segunda-feira, 30 de julho de 2007

ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO...

Quem me vê dirá: não presta,
nem mesmo quando lhe fale,
porque ninguém traz na testa
o selo de quanto vale.

Não vás contar a ninguém
as histórias que não sabes;
nem assim entrarás bem
no lugar em que não cabes.

Deixam-me sempre confuso
as tuas palavras boas,
por não te ver fazer uso
dessa moral que apregoas.

São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós.

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão, mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?

Inteligências há poucas.
Quase sempre as violências
nascem das cabeças ocas,
por medo às inteligências.

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Para triunfar depressa,
cala contigo o que vejas
e finge que não te interessa
aquilo que mais desejas.

Ti, que tanto prometeste
enquanto nada podias,
hoje que podes - esqueceste
tudo quanto prometias...

Os que bons conselhos dão
às vezes fazem-me rir,
- por ver que eles próprios são
incapazes de os seguir.

Não sou esperto nem bruto
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.

Os meus versos o que são?
Devem ser, se os não confundo,
pedaços do coração
que deixo cá neste mundo.

Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são

Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.

Co'o mundo pouco te importas
porque julgas ves direito.
Como há-de ver coisas tortas
quem só vê em seu proveito?

Descreio dos que me apontem
uma sociedade sã:
isto é hoje o que foi ontem
e o que há-de ser amanhã.

Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.

Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande
façam das mil pequeninas
uma só doutrina grande.

O meu mais puro sorriso
eu não o mostro a ninguém;
mas sei rir, quando preciso,
a quem me sorri também

Se o hábito faz o monge
e o mundo quer-se iludido,
que dirá quem vê de longe
um gatuno bem vestido?

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

Nas quadras que a gente vê,
quase sempre o mais bonito
está guardado p'ra quem lê
o que lá não 'stá escrito.

Meus versos que dizem eles
que façam mal a alguém?
Só se fazem mal àqueles
a quem podem ficar bem.

Julgando um dever cumprir,
sem descer no meu critério,
- digo verdades a rir
aos que me mentem a sério!

(ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO... LISBOA-1970, 2ª EDIÇÃO)

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