sexta-feira, 30 de novembro de 2012

Mãe


Mãe:
Que desgraça na vida aconteceu,
Que ficaste insensível e gelada?
Que todo o teu perfil se endureceu
Numa linha severa e desenhada?

Como as estátuas, que são gente nossa
Cansada de palavras e ternura,
Assim tu me pareces no teu leito.
Presença cinzelada em pedra dura,
Que não tem coração dentro do peito.

Chamo aos gritos por ti — não me respondes.
Beijo-te as mãos e o rosto — sinto frio.
Ou és outra, ou me enganas, ou te escondes
Por detrás do terror deste vazio.

Mãe:
Abre os olhos ao menos, diz que sim!
Diz que me vês ainda, que me queres.
Que és a eterna mulher entre as mulheres.
Que nem a morte te afastou de mim!

Miguel Torga, in 'Diário IV'

terça-feira, 27 de novembro de 2012

Sorriso Audível das Folhas

A Teca, proprietária do blogue "Sedimentos", mais uma vez nos surpreende com uma harmoniosa combinação de poesia e imagem: o poema "Sorriso Audível das Folhas" de Fernando Pessoa e o campo vermelho de papoilas. 
Um dia, também eu me surpreendi com um campo vermelho de papoilas e também tirei uma fotografia; e isso foi em Vendas Novas num terreno baldio pegado a uma antiga vivenda perto da estação dos caminhos de ferro onde por décadas viveu e criou família um meu tio-avô.
Rui Moio

foto: amapolas - presente do amigo ANTONIO CAMPILLO

Não és mais que a brisa ali
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri e olha de repente
Para fins de não olhar
Para onde nas folhas sente
O som do vento a passar
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando 
Onde não olha, voltou 
E estamos os dois falando 
O que se não conversou 
Isto acaba ou começou? 

terça-feira, 20 de novembro de 2012

BIBALA


No sopé da serra da chela
Uma linda Vila surgiu!...
Bibala, és a mais bela,
Do Império que se partiu.

Mangueiras grandes em flor,
Fruta da mais variada.
Terra com tamanho sabor,
Só em Angola se achava.

Pertinho do céu se encontrava,
As gentes que lá vivia!...
E a linda terra que amava…

Lugar onde o Sol mais brilhava,
E com o grande calor que fazia,
A maldade lá não entrava.

Fonte: Blogue "Querer e não poder", post de 28Ago2011.

sexta-feira, 16 de novembro de 2012

QUIETUDE

foto: internet

E então ficamos os dois em silêncio,
tão quietos como dois pássaros na sombra,
recolhidos ao mesmo ninho,
como dois caminhos na noite,
dois caminhos que se juntam num mesmo caminho...
Já não ouso... já não coras...
E o silêncio é tão nosso,
e a quietude tamanha que qualquer palavra bateria estranha como um viajante,
altas horas...
Nada há mais a dizer,
depois que as próprias mãos silenciaram seus carinhos...
Estamos um no outro como se estivéssemos sozinhos...

Fonte: Blogue "Sedimentos", post de 03Jul2012.

terça-feira, 13 de novembro de 2012

Daddy


You do not do, you do not do Any more, black shoe In which I have lived like a foot For thirty years, poor and white, Barely daring to breathe or Achoo. Daddy, I have had to kill you. You died before I had time-- Marble-heavy, a bag full of God, Ghastly statue with one gray toe Big as a Frisco seal And a head in the freakish Atlantic Where it pours bean green over blue In the waters off beautiful Nauset. I used to pray to recover you. Ach, du. In the German tongue, in the Polish town Scraped flat by the roller Of wars, wars, wars. But the name of the town is common. My Polack friend Says there are a dozen or two. So I never could tell where you Put your foot, your root, I never could talk to you. The tongue stuck in my jaw. It stuck in a barb wire snare. Ich, ich, ich, ich, I could hardly speak. I thought every German was you. And the language obscene An engine, an engine Chuffing me off like a Jew. A Jew to Dachau, Auschwitz, Belsen. I began to talk like a Jew. I think I may well be a Jew. The snows of the Tyrol, the clear beer of Vienna Are not very pure or true. With my gipsy ancestress and my weird luck And my Taroc pack and my Taroc pack I may be a bit of a Jew. I have always been scared of you, With your Luftwaffe, your gobbledygoo. And your neat mustache And your Aryan eye, bright blue. Panzer-man, panzer-man, O You-- Not God but a swastika So black no sky could squeak through. Every woman adores a Fascist, The boot in the face, the brute Brute heart of a brute like you. You stand at the blackboard, daddy, In the picture I have of you, A cleft in your chin instead of your foot But no less a devil for that, no not Any less the black man who Bit my pretty red heart in two. I was ten when they buried you. At twenty I tried to die And get back, back, back to you. I thought even the bones would do. But they pulled me out of the sack, And they stuck me together with glue. And then I knew what to do. I made a model of you, A man in black with a Meinkampf look And a love of the rack and the screw. And I said I do, I do. So daddy, I'm finally through. The black telephone's off at the root, The voices just can't worm through. If I've killed one man, I've killed two-- The vampire who said he was you And drank my blood for a year, Seven years, if you want to know. Daddy, you can lie back now. There's a stake in your fat black heart And the villagers never liked you. They are dancing and stamping on you. They always knew it was you. Daddy, daddy, you bastard, I'm through.
Fonte. Site "Internal.org" poets/Sylvia_Path

sexta-feira, 9 de novembro de 2012

VERSOS A UMA ÁRVORE

foto: internet

Naquela árvore vejo o meu próprio destino: 
- brota da terra, cresce, reverdece e enflora! 

ontem, 

- pequeno arbusto humilde e pequenino, 
tronco a elevar-se altivo pelo espaço, - 

agora... 

Naquela árvore vejo a minha própria vida, 
veio do mesmo pó de onde todos brotamos, 
e no esforço da luta 
e na ânsia da subida 
desconjuntou seus galhos... 
retorceu seus ramos! ... 

Em mim, 
o homem rasgou minha alma 
e a encheu talvez de feridas mortais e eternas cicatrizes nela, 
- o tronco marcou, quebrou seus ramos, 
fez talhos por onde foge a seiva das raízes... 

Naquela árvore humana um destino se encerra: 
para viver: - lutou! ... para subir: - sofreu!... 
E transformou em flor e em fruto o húmus da terra, 
e indiferente, ao mundo, os ofertou como eu! 
Se se cobriu de folhas, 
de botões surgidos à flor da fronde assim como pingos de aurora, 
- por dentro, os galhos tortos, rudes, retorcidos, 
são as ânsias de dor que ninguém vê por fora... 

Por consolo, - quem sabe? 
- a Natureza deu ao peito de alguns homens coração de poeta, 
assim como as ramagens do arvoredo, 
encheu com a música das aves, gorjeante e inquieta... 

Naquela árvore, 
vejo a minha própria vida; 
no ser: - a mesma seiva bruta e dolorida; 
na face: - a fronde em flor sob a luz e os orvalhos... 
E o seu consolo e o meu, e o consolo da gente, 
são os pássaros a encher de sons alegremente as dores e as torturas íntimas dos galhos!

Fonte: Sedimentos, post de 27Jun2010

terça-feira, 6 de novembro de 2012

O TEMPO PASSA? NÃO PASSA

foto: internet

O tempo passa? Não passa
no abismo do coração.
Lá dentro, perdura a graça
do amor, florindo em canção.

O tempo nos aproxima

cada vez mais, nos reduz
a um só verso e uma rima
de mãos e olhos, na luz.

Não há tempo consumido

nem tempo a economizar.
O tempo é todo vestido
de amor e tempo de amar.

O meu tempo e o teu, amada,

transcendem qualquer medida.
Além do amor, não há nada,
amar é o sumo da vida.

São mitos de calendário

tanto o ontem como o agora,
e o teu aniversário
é um nascer a toda hora.

E nosso amor, que brotou

do tempo, não tem idade,
pois só quem ama escutou
o apelo da eternidade.


Carlos Drummond de Andrade


Fonte: Sedimentos, post de 23Jul2012.

sexta-feira, 2 de novembro de 2012

Bandeira

Somos um povo à parte
desprezado
incompreendido
um povo que lutou e foi vencido.

por isso em meu canto de fé,
clamo e proponho, negro,
que a nossa bandeira
seja um pano negro,
negro da cor da noite sem luar...

sobre essa escuridão de luto e de pesar,
da cor da nossa cor,
escreve, irmão,
com a tua mão rude e vacilante
- mas forte
a palavra-força:

                         união!

traça depois, teimosamente
estas palavras basilares,
edificantes:

                  trabalho, instrução, educação. 


e com letras de ouro,
esplêndidas,
(a mão, mais firme já)
escreve, negro,


                          civilização, progresso, riqueza.

em caracteres róseos
esboça comovido
a palavra-chave da vida:

                                    amor!

com letras brancas
desenha com amor
a palavra sublime:

                                      paz!

a seguir
a vermelho-vivo
a vermelho-sangue,
com tinta feita de negros corpos desfeitos,
em lutas que vamos travar,
a vermelho-vivo,
cor do nosso sangue amassado
e misturado com lágrimas de sangue,
lágrimas por escravos choradas,
escreve, negro, firme e confiante,
com letras todas maiúsculas,
a palavra suprema
(ideal eterno,
nobre ideal
da humanidade atribulada,
que por ela vem lutando
e por ela vem sofrendo)
escreve, negro,
escreve, irmão,
a palavra suprema:

                              LIBERDADE

à volta dessas palavras-alavancas
semeia estrelas às mãos cheias
todas rútilas
todas de primeira grandeza,
estrelas belas da nossa esperança
estrelas lindas da nossa fé
estrelas que serão certeza na nossa BANDEIRA.


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