domingo, 5 de agosto de 2007

Carta I - Escrita de Ceuta



Esta vai com a candeia na mão morrer nas de V. M.; e, se daí passar, seja em cinza, porque não quero que do meu pouco comam muitos. E se todavia, quiser meter mais mãos na escudela, mande-lhe lavar o nome, e valha sem cunhos.

La mar en medio y tierras he dejado
De quanto bien, cuitado, yo tenía.

Cuan vano imaginar, cuan claro engaño
Es darme yo a entender que, con partirme,
De mi se ha de partir un mal tamaño!




Quão mal está no caso quem cuida que a mudança do lugar muda a dor do sentimento! E se não, diga-o "quien dijo que la ausencia causa olvido". Porque, enfim, "en la tierra queda, e o mais a alma acompanha". Ao alvo destes cuidados jogam meus pensamentos à barreira, tendo-me já, pelo costume, tão contente de triste, que triste me faria ser contente; porque "o longo uso dos anos se converte em natureza". Pois o "que é pera mor mal, tenho eu pera mor bem". Ainda que, pera viver no mundo, me debruo de outro pano, por não parecer coruja entre pardais, fazendo-me um pera ser outro, sendo outro pera ser um; mas "dor dissimulada dará seu fruito", que a tristeza no coração é como a traça no pano.

E por tão triste me tenho
Que, se sentisse alegria,
De triste, não viveria.
Porque ,a tal sorte vim,
Que não vejo bem algum
Enquanto vejo,
Que não nasceu pera mim;
E por não sentir nenhum,
Nenhum desejo.




Porque cousas impossíveis, é melhor esquecê-las que
desejá-las. E Por isso

Só tristeza ver queria,
Pois minha ventura quer
Que só a ela
Conheça por alegria,
E que, se outra ver quiser,
Moura por ela.




Pouco sabe da tristeza quem, sem remédio pera ela, diz ao triste que se alegre; pois não vê que alheios contentamentos a um coração descontente, não lhe remediando o que sente, lhe dobram o que padece. Vós, se vem à mão, esperais de mim palavrinhas joeiradas, enforcadas de bons propósitos. Pois desenganai-vos, que, dês que professei tristeza, nunca mais soube jogar a outro fito. E, por que não digais que sou gente fora do meu bairro, vedes, vai üa volta feita a este mote, que nada dos enjeitados; e cuido que não é tão dedo queimado que não seja dos que el-Rei mandou chamar; o qual fala assim:

Não quero e não quero
Jubão amarelo.

Se de negro for,
Melhor me parece.
Quanto me aborrece
Toda a alegre cor!
Cor que mostra dor
Quero, e não quero
Jubão amarelo.




Parece-vos que se pode dizer mais? Não me respondais: Quem gabará a noiva? Porque assentai que fui comendo e fazendo, ou assoprando, que não é tão pequena habilidade. E, por que vos não pareça que foi mais acertar que querê-lo fazer, vedes, vai outra do mesmo jaez, contanto que se não vá a pasmar:

Perdigão perdeu a pena,
Não há sinal que lhe não venha.

Em um mal outro começa,
Que nunca vem só nenhum;
E o triste que tem um
A sofrer outro se of'reça;
E, só pelo ar, conheça,
Que basta um só que tenha,
Pera que outro lhe venha.




Que graça será esperardes de mim propósitos, em cousa que os não tem pera comigo? Pois, ainda que queira, não posso o que quero; que um sentido remontado, de não pôr pé em ramo verde, tudo lhe sucede assim; e cada um acode ao que lhe mais dói; e mais eu, que o que mais me entristece é ter contentamento, pois fujo dele, que minha alma o aborrece, porque lhe lembra que é virtude viver sem ele. Que já sabeis que mágoa é: vê-lo-ás e não o paparás. Por fugir destes inconvenientes,

Toda a cousa descontente
Contentar-me só convinha,

De meu gosto;
Que o mal de que sou doente,
Sua mais certa mezinha
É desgosto.




Já ouviríeis dizer: "Mouro que não podes haver, dá-o
pela tua alma". O mal sem remédio, o mais certo que tem é fazer da necessidade virtude; quanto mais, se tudo tão pouco dura como o passado prazer. Porque, enfim, "allegados son iguales / los que viven por sus manos / y los ricos", etc. A este propósito, pouco mais ou menos, se fizeram üas voltas a um mote de enche-mão, que diz por sua arte, zombando mais, que não de siso, que toda a galantaria é tirá-la de onde se não espera, o qual crede que tem mais que roer do que um praguento. Portanto "recuerde el alma adormida", e mande escumar o entendimento, que, de outra maneira, "de fuera dormiredes, pastorcico". E o meu, Senhor, diz assi:

Dava-lhe o vento no chapeirão,
Quer lhe dê, quer não.

Bem o pode revolver,
Que o vento não traz mais fruito;
E mas vento é sentir muito
O que, enfim, fim há-de ter.
O melhor é melhor ser
Que o vento no chapeirão,
Quer lhe dê, quer não.




Üa cousa sabei de mim: que queria antes o bem do mal, que o mal do bem; porque muita mais se sente o porvir, que o passado; e a morte, até matar, mata. Não sei se sereis marca de voar tão alto; porque, pera tomar a palha a esta matéria, são necessárias asas de nebri. Mas vós sois homem de prol, e desculpa-me a conta em que vos tenho. E a que de mim vos sei dar, é que

Esperança me despede,
Tristeza não me falece,
E tudo o mas me aborrece.
Já que mais não mereceu
Minha estrela,
Só a tristeza conheço,
Pois que pera mim nasceu
E eu pera ela.




No mundo não tem boa sorte senão quem tem por boa a que tem. E daqui me vem contentar-me de triste. Mas olhai de que maneira:

Vivo assi ao revés,
Tomando por certa vida
Certa morte,
Com que folgo em que me pês,
Pois minha sorte é servida
De tal sorte.




Üa cousa sabei: que o mal, inda que às vezes o vejais louvar, não há quem o louve com a boca que o não tache com o coração.

Ajuda-me a sofrer
Vida tão sem sofrimento
E tão sem vida,
Ver que, enfim, fim hão-de ter
Desgosto e contentamento,
Sem medida




Atentai que não são maus confeitos de enforcada pera os que estão com o baraço na garganta, cuidar que o bem e o mal, ainda que sejam diferentes na vida, são conformes na morte; porque vemos

Que não há tão alta sorte
Nem ventura tão subida
Ou desastrada,
A quem o assopro da morte
Não sopre o fogo da vida,
E torne em nada

A seu fim todas cousas vão correndo,
Nem há cousa que o tempo não consuma
Nem vida que de si tanto presuma,
Que se não veja nada em se vendo.

Que o mais certo que temos
É não termos nada certo
Cá na terra,
Pois pera seus não nascemos
Se o seu nos dá incerto,
Nada erra.




Quero-vos dar corta de um soneto sem pernas, que se fez a um certo recontro que se teve com este destruidor de bons propósitos, e não se acabou, porque se teve por mal empregada a obra; cujo teor é o seguinte:

Forçou-me Amor, um dia, que jogasse;
Deu as cartas, e [ás] de ouros levantou;
E, sem respeitar mão, logo trunfo,
Cuidando que o metal que me enganasse,

Dizendo, pois trunfou, que trunfasse,
A üa sota de ouros que jogou;
Eu então, por burlar quem me burlou,
Três paus joguei, e disse que ganhasse.




Príncipes de condição, ainda que o sejam de sangue, são mais enfadonhos que a pobreza; fazem, com sua fidalguia, com que lhe cavemos fidalguias de seus avós, onde não há trigo tão joeirado que não tenha algüa ervilhaca. Já sabeis que basta um frade ruim pera dar que falar a um convento. Duas cousas não se sofrem sem discórdia: companhia no amar, mandar vilão ruim sobre cousa de seu interesse. Não se pode ter paciência com quem quer que lhe façam o que não faz.




Desagardecimentos de boas obras destruem a vontade pera não fazê-las a amigo, que tem mais conta com o interesse que com a amizade; rezai dele, que é dos cá nomeados.




Grande trabalho é querer fazer alegre rosto quando o coração está triste; pano é que não toma nunca bem esta tinta; que a Lüa recebe a claridade do Sol, o rosto do coração. Nada dá quem não dá honra no que dá; não tem que agardecer quem, no que recebe, a não recebe; porque bem comprado vai o que com ela se compra. Não se dá de graça o que se pede muito. Estai certo que quem não tem üa vida tem muitas. Onde a razão se governa pela vontade, há muito que praguejar e pouco que louvar.




Nenhüa cousa homizia os homens tanto consigo como males de que se não guardaram, podendo. Não há alma sem corpo, que tantos corpos faça sem alma, como este purgatório a que chamais honra; onde muitas vezes os homens cuidam que a ganham, aí a perdem. Onde há enveja, não há amizade; nem a pode haver em desigual conversação. Bem mereceu o engano quem creu mais o que lhe dizem que o que viu. Agora, ou se há-de viver no mundo sem verdade, ou com verdade sem mundo. E pera muito pontual, perguntai-lhe de onde vem; vereis que "algo
tiene en el cuerpo, que le duele".




Ora temperai-me lá esta gaita, que nem assi, nem assi achareis meio real de descanso nesta vida; ela nos trata somente como alheios de si, e com razão:

Pois somente nos é dada
Pera que ganhemos nela
O que sabemos.
Se se gasta mal gastada,
Juntamente com perdê-la
Nos perdemos.




Enfim, esta minha senhora, sendo a cousa por que mais fazemos, é a mais fraca alfaia de que nos servimos. E se queremos ver quão breve é,

Ponderemos e vejamos
Que ganhamos em viver
Os que nascemos:
Veremos que não ganhamos
Senão algum bem fazer,
Se o fazemos.

E por isso, respeitando

Que o porvir tal será,
Entesouremos;
Porque [ao certo] não sabemos
Quando a morte pedirá
Que lhe paguemos.




Nunca vi cousa mais pera lembrar e menos lembrada que a morte; sendo mais aborrecida que a verdade, tem-se em menos conta que a virtude. Mas contudo, com o seu pensamento, quando lhe vem à vontade, acarreta mil pensamentos vãos; que tudo pera com ela é um lume de palhas. Nenhüa cousa me enche tanto as medidas pera com estes que vivem na mor bonança, como ela; porque quando lhe menos lembra, então lhe arranca as amarras, dando com os corpos à costa; e, se vem à mão, com as almas no Inferno, que é bem ruim gasalhado. E pois todos isto temos,

Não nos engane a riqueza,
Porque tanto esmorecemos,
Trás que vamos;
Já que temos a certeza
Que, quando mais a queremos,
A deixamos.

Gastamos em alcançá-la
A vida; e quando queremos
Usar dela,
Nos tira a morte lográ-la;
Assi que a Deus perdemos
E a ela.




Porque já ouviríeis dizer: "Ninho feito, pega morta". Que
me dizeis ao contentamento do mundo, que toda a dura dele está enquanto se alcança? Porque acabado de passar, acabado de esquecer. E com razão, porque, acabado de alcançar, é passado; e maior saudade deixa do que é o contentamento que deu. Esperai, por me fazer mercê, que lhe quero dar üas palavrinhas de propósito:

Mundo, se te conhecemos,
Porque tanto desejamos
Teus enganos?
E, se assi te queremos,
Mui sem casa nos queixamos
De teus danos.

Tu não enganas ninguém,
Pois a quem te desejar
Vemos que danas;
Se te querem qual te vêem,
Se se querem enganar
Ninguém enganas.

Vejam-se os bens que teveram
Os que mais em alcançar-te
Se esmeraram;
Que uns, vivendo, não viveram,
E outros só com deixar-te
Descansaram.

E se esta tão clara fé
Te aclara teus enganos,
Desengana;
Sobejamente mal vê
Quem com tantos desenganos
Se engana.

Mas como tu sempre mores
No engano em que andamos
E que vemos,
Não cremos o que tu podes,
Senão o que desejamos
E queremos.

Nada te pode estimar
Quem bem quiser estimar-te
E conhecer-te;
Que, em te perder o ganhar,
O mais seguro ganhar-te
É perde-te.

E quem em ti determina
Descanso poder achar,
Saiba que erra;
Que, sendo a alma divina,
Não pode descansar
Nada da terra.

Nascemos pera morrer,
Morremos pera ter vida,
Em ti morrendo.
O mais certo é merecer
Nós a vida conhecida,
Cá vivendo.

Enfim, Mundo, és estalagem
Em que pousam nossas vidas
De corrida;
De ti levam de passagem
Ser bem ou mal recebidas
Na outra vida.




"Afuera, afuera, Rodrigo", que eu, se muito for por este
caminho, darei em enfadonho. Inda que me pareça já me não livrará privilégio de cidadão do Porto. E pois me vendo a vós, sofrei com meus encargos. E por que não digais que sou herege de Amor, e que lhe não sei orações, vedes, vai üa "Di, Juan, de que murió Blas"? com um pé à portuguesa e outro à castelhana; e não vos espanteis da libré, que eu em qualquer palmo desta matéria perco norte. E os suplicantes dizem assim:

- Di, Juan, de que murió Blas,
Tan niño y tan mal logrado?
- Gil murió de desamado.

- Dime, Juan, quién le engañó,
Que con Amor se engañase,
Pensando que el bien hallase
Adonde el mal cierto halló?
Despues que el engano vio,
Que hizo, desengañado?
- Gil, murió de desamado.

Travou com ele pendença,
Em ter razão confiado;
Mas Amor, como é letrado,
Houve contra ele a sentença;
E com aquela diferença,
Disse entre si o coitado:
- João, morro eu de desamado.

Quem tem razão tão cerrada
Que não saiba, sendo rudo
E sem respeito,
Que, sem Deus, é tudo nada,
E nada, com ele, tudo
Sem defeito?

E sendo isto assi tão certo,
Como todos confessamos
E sabemos,
Não troquemos pelo incerto
O em que tão certo estamos,
Pois o vemos.




A tudo isto podeis responder que todos morremos do mal de Faetão, porque "del dicho al hecho, va gran trecho". E de saber as cousas a passar por elas, há mais diferença que de consolar a ser consolado. Mas assi entrou o Mundo, e assi há-de sair; muitos a repreendê-lo e poucos a emendá-lo. E com isto amaino, beijando essas poderosas mãos üa quatrínqua de vezes, cuja vida e reverendíssima pessoa nosso Senhor, etc.







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