terça-feira, 31 de julho de 2007

O Ultimo Adeus Dum Combatente

Naquela tarde em que eu parti e tu ficaste
sentimos, fundo, os dois a mágoa da saudade.
Por ver-te as lágrimas sangrarem de verdade
sofri na alma um amargor quando choraste.

Ao despedir-me eu trouxe a dor que tu levaste!
Nem só o teu amor me traz a felicidade.
Quando parti foi por amar a Humanidade
Sim! foi por isso que eu parti e tu ficaste!

Mas se pensares que eu não parti e a mim te deste
será a dor e a tristeza de perder-me
unicamente um pesadelo que tiveste.

segunda-feira, 30 de julho de 2007

A Drummond de Andrade - (com a devida vénia)

Velho Drummond se te tivera
Junto de mim a esta hora
em que o silêncio é uma ordem
e a solidão longa espera
Tu me prestaras teu verbo
ou tua mão estendida
cheia dessa humanidade
que alguma vez pressentira
se alguma vez entendera
como agora

Lembras-te Drummond amigo
num território macabro
É como levares contigo
Um filho desnaturado

O Que Faz Falta

Quando a corja topa da janela
O que faz falta
Quando o pão que comes sabe a merda
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta
O que faz falta é avisar a malta
O que faz falta

Quando nunca a noite foi dormida
O que faz falta
Quando a raiva nunca foi vencida
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é acordar a malta
O que faz falta

Quando nunca a infância teve infância
O que faz falta
Quando sabes que vai haver dança
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um cão morde uma canela
O que faz falta
Quando à esquina hé sempre uma cabeça
O que faz falta
O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é empurrar a malta
O que faz falta

Quando um homem dorme na valeta
O que faz falta
Quando dizem que isto é tudo treta
O que faz falta

O que faz falta é animar a malta
O que faz falta
O que faz falta é libertar a malta
O que faz falta

Vampiros

No céu cinzento
Sob o astro mudo
Batendo as asas
Pela noite calada
Vêm em bandos
Com pés de veludo
Chupar o sangue
Fresco da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

A toda a parte
Chegam os vampiros
Poisam nos prédios
Poisam nas calçadas
Trazem no ventre
Despojos antigos
Mas nada os prende
Às vidas acabadas

São os mordomos
Do universo todo
Senhores à força
Mandadores sem lei
Enchem as tulhas
Bebem vinho novo
Dançam a ronda
No pinhal do rei

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

No chão do medo
Tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos
Na noite abafada
Jazem nos fossos
Vítimas dum credo
E não se esgota
O sangue da manada

Se alguém se engana
Com seu ar sisudo
E lhes franqueia
As portas à chegada
Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Eles comem tudo
Eles comem tudo
Eles comem tudo
E não deixam nada

Menino D'Oiro

O meu menino é d'oiro
É d'oiro fino
Não façam caso
Que é pequenino

O meu menino é d'oiro
D'oiro fagueiro
Hei-de levá-lo
No meu veleiro

Venham aves do céu
Pousar de mansinho
Por sobre os ombros
Do meu menino

Venham comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino
No meu trenó

Quantos sonhos ligeiros
P'ra teu sossego
Menino avaro
Não tenhas medo

Onde fores no teu sonho
Quero ir contigo
Menino d'oiro
Sou teu amigo

Venham altas montanhas
Ventos do mar
Que o meu menino
Nasceu p'ra amar

Venham comigo venham
Que eu não vou só
Levo o menino
No meu trenó

Venham Mais Cinco

Venham mais cinco
Duma assentada
Que eu pago já
Do branco ou tinto
Se o velho estica
Eu fico por cá

Se tem má pinta
Dá-lhe um apito
E põe-no a andar
De espada à cinta
Já crê que é rei
D'aquém e D'além Mar

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

A gente ajuda
Havemos de ser mais
Eu vem sei
Mas há quem queira
Deitar abaixo
O que eu levantei

A bucha é dura
Mais dura é a razão
Que a sustém
Só nesta rusga
Não há lugar
Pr'ós filhos da mãe

Não me obriguem
A vir para a rua
Gritar
Que é já tempo
D'embalar a trouxa
E zarpar

Bem me diziam
Bem me avisavam
Como era a lei
Na minha terra
Quem trepa
No coqueiro
É o rei

Fui à Beira do Mar

Fui à beira do mar
Ver o que lá havia
Ouvi uma voz cantar
Que ao longe me dizia

Ó cantador alegre
Que é da tua alegria
Tens tanto para andar
E a noite está tão fria

Desde então a lavrar
No meu peito a Alegria
Ouço alguém a bradar
Aproveita que é dia

Sentei-me a descansar
Enquanto amanhecia
Entre o céu e o mar
Uma proa rompia

Desde então a bater
No meu peito em segredo
Sinto uma voz dizer
Teima, teima sem medo

Maio Maduro Maio

Maio maduro maio
Quem te pintou
Quem te quebrou o encanto
Nunca te amou
Raiava o Sol já no Sul
E uma falua vinha
Lá de Istambul

Sempre depois da sesta
Chamando as flores
Era dia de festa
Maio de amores
Era dia de cantar
E uma falua andava
Ao longe a varar

Maio com meu amigo
Quem me dera já
Sempre depois do trigo
Se cantará
Qu'importa depois do trigo
Se cantará
Qu'importa a fúria do mar
Que a voz não te esmoreça
Vamos lutar.

Numa rua comprida
El-rei pastor
Vende o soro da vida
Que mata a dor
Venham ver, Maio nasceu
Que a voz não te esmoreça
A turba rompeu

Grândola, Vila Morena

Grândola vila morena
Terra da fraternidade
O povo é quem mais ordena
Dentro de ti ó cidade

Dentro de ti ó cidade
O povo é quem mais ordena
Terra da fraternidade
Grândola vila morena

Em cada esquina um amigo
Em cada rosto igualdade
Grândola vila morena
Terra da fraternidade

Terra da fraternidade
Grândola vila morena
Em cada rosto igualdade
O povo é quem mais ordena

À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade
Jurei ter por companheira
Grândola a tua vontade

Grândola a tua vontade
Jurei ter por companheira
À sombra duma azinheira
Que já não sabia a idade

Cantigas de Maio

Eu fui ver a minha amada
Lá p'rós baixos dum jardim
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para se lembrar de mim

Eu fui ver o meu benzinho
Lá p'rós lados dum passal
Dei-lhe o meu lenço de linho
Que é do mais fino bragal

Eu fui ver uma donzela
Numa barquinha a dormir
Dei-lhe uma colcha de seda
Para nela se cobrir

Eu fui ver uma solteira
Numa salinha a fiar
Dei-lhe uma rosa vermelha
Para de mim se encantar

Eu fui ver a minha amada
Lá nos campos eu fui ver
Dei-lhe uma rosa encarnada
Para de mim se prender

Verdes prados, verdes campos
Onde está minha paixão
As andorinhas não param
Umas voltam outras não

Minha mãe quando eu morrer
Ai chore por quem muito amargou
Para então dizer ao mundo
Ai Deus mo deu Ai Deus mo levou

Canto Jovem

Somos filhos da madrugada
Pelas praias do mar nos vamos
À procura de quem nos traga
Verde oliva de flor no ramo
Navegámos de vaga em vaga
Não soubemos de dor nem mágoa
Pelas praias do mar nos vamos
À procura da manhã clara

Lá do cimo duma montanha
Acendemos uma fogueira
Para não se apagar a chama
Que dá vida na noite inteira
Mensageira pomba chamada
Companheira da madrugada
Quando a noite vier que venha
Lá do cimo duma montanha

Onde o vento cortou amarras
Largaremos pela noite fora
Onde há sempre uma boa estrela
Noite e dia ao romper da aurora
Vira a proa minha galera
Que a vitória já não espera
Fresca brisa moira encantada
Vira a proa da minha barca

Traz Outro Amigo Também - (À memória de Miguel Ramos)

Amigo
Maior que o pensamento
Por essa estrada amigo vem
Não percas tempo que o vento
É meu amigo também

Em terras
Em todas as fronteiras
Seja benvindo quem vier por bem
Se alguém houver que não queira
Trá-lo contigo também

Aqueles
Aqueles que ficaram
(Em toda a parte
Todo o mundo tem)
Em sonhos me visitaram
Traz outro amigo também

Vejam Bem

Vejam bem
Que não há
Só gaivotas
Em terra
Quando um homem
Se põe
A pensar

Quem lá vem
Dorme à noite
Ao relento
Na areia
Dorme à noite
Ao relento
Do mar

E se houver
Uma praça
De gente
Madura
E uma estátua
De febre
A arder

Anda alguém
Pela noite
De breu
À procura
E não há
Quem lhe queira
Valer

Vejam bem
Daquele homem
A fraca
Figura
Desbravando
Os caminhos
Do pão

E se houver
Uma praça
De gente
Madura
Ninguém vem
Levantá-lo
Do chão

Canção de Embalar

Dorme meu menino a estrela d'alva
Já a procurei e não a vi
Se ela não vier de madrugada
Outra que eu souber será p'ra ti

Outra que eu souber na noite escura
Sobre o teu sorriso de encantar
Ouvirás cantando nas alturas
Trovas e cantigas de embalar

Trovas e cantigas muito belas
Afina a garganta meu cantor
Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor

Perde a estrela d'alva pequenina
Se outra não vier para a render
Dorme que inda a noite é uma menina
Deixa-a vir também adormecer.

Balada do Sino

Uma barquinha
Lá vem lá vem
Dim Dem
Na barquinha de Belém

Senhor Barqueiro
Quem leva aí
Dão Dim
Na barquinha d'Aladim

Levo a cativa
Duma só vez
Dois três
Na barquinha do marquês

Ao romper d'alva
Casada vem
Dim Dem
Na barquinha é que vai bem

Se a tem guardada
Deixe-a fugir
Dão Dim
Na barquinha do Vizir

Lá vai roubada
Lá vai na mão
Dim Dão
Na barquinha do ladrão

Natal dos Simples

Vamos cantar as janeiras
Vamos cantar as janeiras
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas solteiras

Vamos cantar orvalhadas
Vamos cantar orvalhadas
Por esses quintais adentro vamos
Às raparigas casadas

Vira o vento e muda a sorte
Vira o vento e muda a sorte
Por aqueles olivais perdidos
Foi-se embora o vento norte

Muita neve cai na serra
Muita neve cai na serra
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem tem saudades da terra

Quem tem a candeia acesa
Quem tem a candeia acesa
Rabanadas pão e vinho novo
Matava a fome à pobreza

Já nos cansa esta lonjura
Já nos cansa esta lonjura
Só se lembra dos caminhos velhos
Quem anda à noite à'ventura

Adeus ó Serra da Lapa

Adeus ó serra da Lapa
Adeus que te vou deixar
Ó minha Terra ó minha enxada
Não faço gosto em voltar

Companheiros de aventura
Vinde comigo viajar
A noite é negra a vida é dura
Não faço gosto em voltar

Dou-te o meu lenço bordado
Quando de ti me apartar
Eu quero ir ao outro lado
Não faço gosto em voltar

O meu dinheiro contado
É para quem me levar
O meu caminho está traçado
Não faço gosto em voltar

Moirar a terra insegura?
Fugir da serra e do mar?
Meus companheiros de aventura
Tudo farei para a salvar

Retrato

O'Neill (Alexandre), moreno português,
cabelo asa de corvo; da angústia da cara,
nariguete que sobrepuja de través
a ferida desdenhosa e não cicatrizada.
Se a visagem de tal sujeito é o que vês
(omita-se o olho triste e a testa iluminada)
o retrato moral também tem os seus quês
(aqui, uma pequena frase censurada...)
No amor? No amor crê (ou não fosse ele O'Neill!)
e tem a veleidade de o saber fazer
(pois amor não há feito) duas maneiras mil
que são a semovente estátua do prazer
Mas sofre de ternura, bebe de mais ri-se
do que neste soneto sobre si mesmo disse...

(1962)

De Porta em Porta

- Quem? O infinito?
Diz-lhe que entre.
Faz bem ao infinito
estar entre gente.

- Uma esmola? Coxeia?
Ao que ele chegou!
Podes dar-lhe a bengala
que era do avô.

- Dinheiro? Isso não!
Já sei, pobrezinho,
que em vez de pão
ia comprar vinho...

- Teima? Que topete!
Quem se julga ele
se um tigre acabou
nesta sala em tapete?

- Para ir ver a mãe?
Essa é muito forte!
Ele não tem mãe
e não é do Norte...

- Vitima de quê?
O dito está dito.
Se não tinha estofo
quem o mandou ser
infinito?

(1960)

O Amor é Amor

O amor é o amor - e depois?
Vamos ficar os dois
a imaginar, a imaginar?...

O meu peito contra o teu peito
cortando o mar, cortando o ar.
Num leito
há todo o espaço para amar!

Na nossa carne estamos
sem destino, sem medo, sem pudor,
e trocamos - somos um? somos dois? -
espírito e calor!

O amor é o amor - e depois?

(1960)

Amigo

Mal nos conhecemos
Inaugurámos a palavra amigo!

"Amigo" é um sorriso
De boca em boca,
Um olhar bem limpo,
Uma casa, mesmo modesta, que se oferece.
Um coração pronto a pulsar
Na nossa mão!

"Amigo" (recordam-se, vocês aí,
Escrupulosos detritos?)
"Amigo" é o contrário de inimigo!
"Amigo" é o erro corrigido,
Não o erro perseguido, explorado,
É a verdade partilhada, praticada.

"Amigo" é a solidão derrotada!
"Amigo" é uma grande tarefa,
Um trabalho sem fim,
Um espaço sem fim,
Um espaço útil, um tempo fértil,
"Amigo" vai ser, é já uma grande festa!

Árvore de Frutos

Cheiras ao caju da minha infância
e tens a cor do barro vermelho molhado
de antigamente;
há sabor a manga a escorrer-te na boca
e dureza de maboque a saltar-te nos seios.

Misturo-te com a terra vermelha
e com as noites
de histórias antigas
ouvidas há muito.

No teu corpo
sons antigos dos batuques à minha porta,
com que me provocas,
enchem-me o cérebro de fogo incontido.

Amor, és o sonho feito carne
do meu bairro antigo do musseque!

Dádiva

Sou mais forte que o silêncio dos muxitos
mas sou igual ao silêncio dos muxitos
nas noites de luar e sem trovões.

Tenho o segredo dos capinzais
soltando ais
ao fogo das queimadas de setembro
tenho a carícia das folhas novas
cantando novas
que antecedem as chuvadas
tenho a sede das plantas e dos rios
quando frios
crestam o ramos das mulembas.

...e quando chega o canto das perdizes
e nas anharas revive a terra em cor
sinto em cada flor
nos seus matizes
que és tudo o que a vida me ofereceu.

Já Não É...

Já não é a noite que promete algum desejo
e o amanhecer não reflecte mais quimeras
no olhar.

Aquilo que era sol em cada verso
são os caídos,
é a queda
de cada pedra companheira
movida ainda sabe-se lá por que impulsão
após a morte!

As palavras que prometem
vêm depois que silvam balas
e a decisão dos homens.

Restamos nós rochedos brutos da montanha
face voltada ao amanhã que sempre nos guiou.

Cairemos não importa.

Nós somos o carvão da luz futura.

Poesia com armas, Costa Andrade, Sá da Costa, Lisboa, 1975

Autobiografia

Não existe mais
a casa onde nasci
nem meu Pai
nem a mulembeira
da primeira sombra.

Não existe o pátio
o forno a lenha
nem os vasos e a casota do leão.

Nada existe
nem sequer ruínas
entulho de adobes e telhas
calcinadas.

Alguém varreu o fogo
a minha infância
e na fogueira arderam todos os ancestres.

Palavra de Poeta, Cabo Verde e Angola, de Denira Rozário, Bertrand Brasil, 1999)

O SOL NASCE A ORIENTE - (de um quadro de Malangatana)

Povo, de ti canto o movimento
teu nome, canção feita de fronteiras
lua nova, javite ou lança
tua hora, quissange em trança

Do longo longe do tempo
arde minha flecha, meu lamento
minha bandeira de outro vento
aurora urdida nos la'bios de Zumbi

De ti guardo o gesto
as conversas leves das árvores
a fala sabia das aves
o dialecto novo do silêncio
e as pedras, as palavras do medo
os olhos falantes da mata
quando a onc,a posta a sua arte
nos fita, guardada em sua mágoa.

De ti amo a denuncia felina
das tuas mãos quebradas ao presente
a danc,a prometida do sol
nascer um dia a Oriente

Quando a manhã vier

Quando a manhã vier
com um sol maduro
ofertando beijos
aos órfaos da ternura
quando a manhã vier
em apoteose de luz
a semear no vento
risos de alegria

quando a manhã vier
definitivamente
em alvorecer roseo
de paz e tranquilidade

de mãos nas mãos
saberemos chegado o nosso dia.

Canção para Luanda

A pergunta no ar
no mar
na boca de todos nós:
- Luanda onde está?

Silêncio nas ruas
Silêncio nas bocas
Silêncio nos olhos

- Xé
mana Rosa peixeira
responde?

-Mano
Não pode responder
tem de vender
correr a cidade
se quer comer!

"Olá almoço, olá almoçoeee
matona calapau
ji ferrera ji ferrereee"

- E você
mana Maria quintandeira
vendendo maboques
os seios-maboque
gritando, saltando
os pés percorrendo
caminhos vermelhos
de todos os dias?
"maboque, m'boquinha boa
doce docinha"

- Mano
não pode responder
o tempo é pequeno
para vender!

Zefa mulata
o corpo vendido
baton nos lábios
os brincos de lata
sorri
abrindo o seu corpo
- seu corpo cubata!
Seu corpo vendido
viajado
de noite e de dia.
- Luanda onde está?

Mana Zefa mulata
o corpo cubata
os brincos de lata
vai-se deitar
com quem lhe pagar
- precisa comer!

- Mano dos jornais
Luanda onde está?
As casa antigas
o barro vermelho
as nossas cantigas
tractor derrubou?

Meninos das ruas
cacambulas
quigosas
brincadeiras minhas e tuas
asfalto matou?

- Manos
Rosa peixeira
quitandeira Maria
você também
Zefa mulata
dos brincos de lata
- Luanda onde está?

Sorrindo
as quindas no chão
laranjas e peixe
maboque docinho
a esperança nos olhos
a certeza nas mãos
mana Rosa peixeira
quitandeira Maria
Zefa mulata
- os panos pintados
garridos, caidos
mostraram o coração:
- Luanda está aqui!

Não Vale a Pena Pisar

O capim não foi plantado
nem tratado,
e cresceu. É força
tudo força
que vem da força da terra.
Mas o capim está a arder
e a força que vem da terra
com a pujança da queimada
parece desaparecer.

Mas não! Basta a primeira chuvada
para o capim reviver.

Mas Há a Vida

Mas há a vida
que é para ser
intensamente vivida,
há o amor.
Que tem que ser vivido
até a ultima gota.
Sem nenhum medo.
Não mata.

Flores do Verde Pinho

Ó meu jardim de saudades,
Verde catedral marinha,
E cuja reza caminha
Pelas reboantes naves...

Ai flores do verde pinho,
Dizei que novas sabedes
Da minha alma, cujas sedes
Ma perderam no caminho!

Revejo-te e venho exangue;
Acolhe-me com piedade,
Longo jardim da saudade
Que me puseste no sangue.

Ai flores do verde ramo,
Dizei que novas sabedes
Da minha alma, cujas sedes
Ma alongaram do que eu amo!

- A tua alma em mim existe,
E anda no aroma das flores,
Que te falam dos amores
De tudo o que é lindo e triste.

A tua alma, com carinho,
Eu guardo-a, e deito-a, a cantar,
Das flores do verde pinho
- Àquelas ondas do mar. 7, 99

PAÍS LILÁS, DESTERRO AZUL, LÍRICAS PORTUGUESAS, PORTUGÁLIA
EDITORA, 3ª SÉRIE, PAG. 125

Cavalo à solta

Minha laranja amarga e doce
meu poema
feito de gomos de saudade
minha pena
pesada e leve
secreta e pura
minha passagem para o breve, breve
instante da loucura

Minha ousadia
meu galope
minha rédea
meu potro doido
minha chama
minha réstia
de luz intensa
de voz aberta
minha denúncia do que pensa
do que sente a gente certa

Em ti respiro
em ti eu provo
por ti consigo
esta força que de novo
em ti persigo
em ti percorro
cavalo à solta
pela margem do teu corpo

Minha alegria
minha amargura
minha coragem de correr contra a ternura.

Por isso digo
canção castigo
amêndoa travo corpo alma amante amigo
por isso canto
por isso digo
alpendre casa cama arca do meu trigo

Meu desafio
minha aventura
minha coragem de correr contra a ternura

Ao meu falecido irmão Manuel Maria Barbosa du Bocage

Meu sacana de versos! Meu vadio,
Fazes falta ao Rossio. Falta ao Nicola.
Lisboa é uma sarjeta. É um vazio.
E é raro o poeta que entre nós faz escola.

Mastigam ruminando o desafio.
São uns merdosos que nos pedem esmola.
Aos vinte anos cheiram a bafio,
têm joanetes culturais na tola.

Que diria Camões, nosso padrinho,
ou o Primo Fernando que acarinho
como Pessoa viva à cabeceira?

O que me vale é que não estou sozinho,
ainda se encontram alguns pés de linhos
crescendo não sei como na estrumeira.

SONETOS PORTUGUESES, LELLO & IRMÃOS - EDITORES, 1995, P.104

Poeta castrado, não!

Serei tudo o que disserem
por inveja ou negação:
cabeçudo dromedário
fogueira de exibição
teorema corolário
poema de mão em mão
lãzudo publicitário
malabarista cabrão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

Os que entendem como eu
as linhas com que me escrevo
reconhecem o que é meu
em tudo quanto lhes devo:
ternura como já disse
sempre que faço um poema;
saudade que se partisse
me alagaria de pena;
e também uma alegria
uma coragem serena
em renegar a poesia
quando ela nos envenena.

Os que entendem como eu
a força que tem um verso
reconhecem o que é seu
quando lhes mostro o reverso:

Da fome já se não fala
- é tão vulgar que nos cansa -
mas que dizer de uma bala
num esqueleto de criança?

Do frio não reza a história
- a morte é branda e letal -
mas que dizer da memória
de uma bomba de napalm?

E o resto que pode ser
o poema dia a dia?
- Um bisturi a crescer
nas coxas de uma judia;
um filho que vai nascer
parido por asfixia?
- Ah não me venham dizer
que é fonética a poesia!

Serei tudo o que disserem
por temor ou negação:
Demagogo mau profeta
falso médico ladrão
prostituta proxeneta
espoleta televisão.
Serei tudo o que disserem:
Poeta castrado não!

VINTE ANOS DE POESIA, RESUMO, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.131

A máquina de escrever

Meu amor silabado minha exdrúxula
meu acento tão grave que me abre
minha rosa-dos-ventos minha bússola
minha vírgula tola meu sentido
reticências parágrafo gemido

A
caído
na tecla do ouvido
E
incerto
dois espaços parágrafo deserto
I
sorriso mundano que é preciso
O
círculo fechado
U
murmúrio atento e obrigado

Meu carreto de sonhos meu endereço
retrocesso paragem recomeço
minha caixa postal sem nada dentro
minha resposta paga TEMPO E VENTO
meus dois pontos de angústia CARNE E ÁGUA
minha letra dobrada MAR E MÁGOA
meu ditongo de sono PÃO E CÃO
meu açaimo de frases de palavras
agastadas batidas desgastadas
ditadas digitadas agitadas
pela dança guerreira dos meus dedos.
Minha letra maiúscula de MEDO
tabulador da minha solidão.

Minha aspa dos olhos minha infância
minha última cópia da verdade
til subtil caindo no papel
pelo trema abolido da saudade.

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.73

A máquina de costura

Talhem-se as palavras justas
ao corpo do sofrimento
as imagens serão curtas
amplos os ombros do tempo
soltos os panos dos olhos
bordados os do talento
cosidos os dos ouvidos
ao forro do pensamento.

Tome-se o têxtil do tema
e corte-se o que é preciso
com a tesoura do riso.
Mas na orla do poema
depois da obra acabada
deixe-se ao menos um dedo
de tristeza embainhada.

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.71

Arte peripoética

Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de ser
contra a maneira do tempo
esta maneira de ver
o que o tempo tem por dentro.
Aristóteles diria
entre dois goles de chá
que o melhor ainda seria
deixar o tempo onde está
pô-lo de perto no tema
e de parte na poesia
para manter o poema
dentro da ordem do dia.
Aristóteles, visita
da casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só.
Ele sabia que o poeta
depois de tudo inventado
depois de tudo previsto
de tudo vistoriado
teria de fazer isto
para não continuar
o que já estava acabado
teria de ser presente
não futuro antecipado
não profeta não vidente
mas aço bem temperado
cachorro ferrando o dente
na canela do passado
adaga cravando a ponta
no coração do sentido
palavra osso furando
pele de cão perseguido.
Aristóteles, visita
de casa de minha avó,
não acharia esquisita
esta forma de estar só
esta maneira de riso
que é a mais original
forma de se ter juízo
e ser poeta actual.
Aristóteles, visita
de casa de minha avó,
também diria antes só
do que mal acompanhado
antes morto emparedado
em muro de pedra e cal
aonde não entre bicho
que não seja essencial
à evasão da palavra
deste silêncio mortal.

VINTE ANOS DE POESIA, ADEREÇOS, ENDEREÇOS, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.57

Kyrie

Em nome dos que choram,
Dos que sofrem,
Dos que acendem na noite o facho da revolta
E que de noite morrem,
Com a esperança nos olhos e arames em volta.
Em nome dos que sonham com palavras
De amor e de paz que nunca foram ditas,
Em nome dos que rezam em silêncio
E falam em silêncio
E estendem em silêncio as duas mãos aflitas.
Em nome dos que pedem em segredo
A esmola que os humilha e os destrói
E devoram as lágrimas e o medo
Quando a fome lhes dói.
Em nome dos que dormem ao relento
Numa cama de chuva com lençóis de vento
O sono da miséria, terrível e profundo.
Em nome dos teus filhos que esqueceste,
Filho de Deus que nunca mais nasceste,
Volta outra vez ao mundo!

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.21

Da condição humana

Todos sofremos.
O mesmo ferro oculto
Nos rasga e nos estilhaça a carne exposta.
O mesmo sal nos queima os olhos vivos.
Em todos dorme
A humanidade que nos foi imposta.
Onde nos encontramos, divergimos.
É sermos iguais que nos esquemos
Que foi do mesmo sangue,
Que foi do mesmo ventro que surgimos.

VINTE ANOS DE POESIA, A LITURGIA DO SANGUE, CIRCULO DE LEITORES, 1984, P.12

Aprender a estudar

Estudar é muito importante,
mas pode-se estudar de várias maneiras....
Muitas vezes estudar não é só aprender
o que vem nos livros.

Estudar não é só ler nos livros
que há nas escolas.
E também aprender a ser livre,
sem ideias tolas.
Ler um livro é muito importante,
ás vezes urgente.
Mas os livros não são o bastante
para a gente ser gente.
É preciso aprender a escrever, mas também a viver, mas também a sonhar.
É preciso aprender a crescer,
aprender a estudar.

Aprender a crescer quer dizer:
aprender a estudar, a conhecer os outros,
a ajudar os outros,
a viver com os outros.
E quem aprende a viver com os outros
aprende sempre a viver bem consigo próprio.
Não merecer um castigo é estudar.
Estar contente consigo é estudar.
Aprender a terra, aprender o trigo
e ter um amigo também é estudar.

Estudar também é repartir,
também é saber dar
o que a gente souber dividir
para multiplicar.
Estudar é escrever um ditado
sem ninguém nos ditar;
e se um erro nos fôr apontado
é sabê-lo emendar.
É preciso em vez de um tinteiro,
ter uma cabeça que saiba pensar,
pois, na escola da vida, primeiro está saber estudar.

Cantar todas as papoilas de um trigal
é a mais linda conta que se pode fazer.
Dizer apenas música,
quando se ouve um pássaro,
pode ser a mais bela redacção do mundo...
mas pensar é tudo!

ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO...

Quem me vê dirá: não presta,
nem mesmo quando lhe fale,
porque ninguém traz na testa
o selo de quanto vale.

Não vás contar a ninguém
as histórias que não sabes;
nem assim entrarás bem
no lugar em que não cabes.

Deixam-me sempre confuso
as tuas palavras boas,
por não te ver fazer uso
dessa moral que apregoas.

São parvos, não rias deles,
deixa-os ser, que não são sós;
às vezes rimos daqueles
que valem mais do que nós.

Que importa perder a vida
em luta contra a traição,
se a Razão, mesmo vencida,
não deixa de ser Razão?

Inteligências há poucas.
Quase sempre as violências
nascem das cabeças ocas,
por medo às inteligências.

P'ra mentira ser segura
e atingir profundidade,
tem que trazer à mistura
qualquer coisa de verdade.

Para triunfar depressa,
cala contigo o que vejas
e finge que não te interessa
aquilo que mais desejas.

Ti, que tanto prometeste
enquanto nada podias,
hoje que podes - esqueceste
tudo quanto prometias...

Os que bons conselhos dão
às vezes fazem-me rir,
- por ver que eles próprios são
incapazes de os seguir.

Não sou esperto nem bruto
nem bem nem mal educado:
sou simplesmente o produto
do meio em que fui criado.

Os meus versos o que são?
Devem ser, se os não confundo,
pedaços do coração
que deixo cá neste mundo.

Porque o mundo me empurrou,
caí na lama, e então
tomei-lhe a cor, mas não sou
a lama que muitos são

Eu não tenho vistas largas,
nem grande sabedoria,
mas dão-me as horas amargas
lições de filosofia.

Co'o mundo pouco te importas
porque julgas ves direito.
Como há-de ver coisas tortas
quem só vê em seu proveito?

Descreio dos que me apontem
uma sociedade sã:
isto é hoje o que foi ontem
e o que há-de ser amanhã.

Vós que lá do vosso império
prometeis um mundo novo,
calai-vos que pode o povo
qu'rer um mundo novo a sério.

Há luta por mil doutrinas.
Se querem que o mundo ande
façam das mil pequeninas
uma só doutrina grande.

O meu mais puro sorriso
eu não o mostro a ninguém;
mas sei rir, quando preciso,
a quem me sorri também

Se o hábito faz o monge
e o mundo quer-se iludido,
que dirá quem vê de longe
um gatuno bem vestido?

Sei que pareço um ladrão...
mas há muitos que eu conheço
que, sem parecer o que são,
são aquilo que eu pareço.

Nas quadras que a gente vê,
quase sempre o mais bonito
está guardado p'ra quem lê
o que lá não 'stá escrito.

Meus versos que dizem eles
que façam mal a alguém?
Só se fazem mal àqueles
a quem podem ficar bem.

Julgando um dever cumprir,
sem descer no meu critério,
- digo verdades a rir
aos que me mentem a sério!

(ESTE LIVRO QUE VOS DEIXO... LISBOA-1970, 2ª EDIÇÃO)

Pálida e Loira

Morreu. Deitada num caixão estreito,
pálida e loira, muito loira e fria,
o seu lábio tristíssimo sorria
como num sonho virginal desfeito.

Lírio que murcha ao despontar do dia,
foi descansar no derradeiro leito,
as mãos de neve erguidas, sobre o peito,
pálida e loira, muito loira e fria.

Tinha a cor da raínha das baladas
e das monjas antigas maceradas
no pequenino esquife em que dormia.

Levou-a a morte em sua garra adunca,
e eu nunca mais pude esquecê-la, nunca!
pálida e loira, muito loira e fria.

Quadras

Alma de humilde tem asas,
De ambicioso, rasteja.
O incenso morre nas brasas
E perfuma toda a igreja...

Pedaços de espelho são
Espelhos do mesmo modo...
Reparte o meu coração
E em cada parte irás todo!

Porque fui dançar na boda,
Em que foi que te ofendi?
Andei sempre à roda, à roda,
- Mas sempre à roda de ti...

Não anda sem companheira
O amor, a eterna criança...
Quando não é a Cegueira,
É sempre a Desconfiança

Luar de Janeiro

Quando as andorinhas partiam...

Boca talhada em milagrosas linhas,
A luz aumenta com o seu falar.

Esta manhã, um bando de andorinhas
Ia-se embora, atravessava o mar.

Chegou-lhes às alturas, pela aragem,
Um adeus suave que ela lhes dissera,

- E suspenderam todas a viagem,
Julgando que voltara a Primavera...

Balada da Neve

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim.
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim.

É talvez a ventania:
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
– Há quanto tempo a não via!
E que saudades, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos, enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na Natureza
– e cai no meu coração.

Meditação

Tudo imaterial na praia rasa
Cheia de sol, ao fim da tarde.
Proa ao vento quebrada,
A vaga, entre rochedos, se ilumina.

É tudo imaterial, tudo neblina
Ténue que aos poucos arde,
Ao fim da tarde se desfaz, flutua;
Nave de outros tempos se insinua
E voo de ave desliza
Ao longe linha pura.
Tudo imaterial na praia rasa.

Aqui ninguém me vê: amo a ternura.

Linha de Rumo

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Encontro-me parado...
Olho em redor e vejo inacabado
O meu mundo melhor.

Tanto tempo perdido...
Com que saudade o lembro e o bendigo:
Campo de flores
E silvas...

Fonte da vida fui. Medito. Ordeno.
Penso o futuro a haver.
E sigo deslumbrado o pensamento
Que se descobre.

Quem não me deu Amor, não me deu nada.
Desterrado,
Desterrado prossigo.
E sonho-me sem Pátria e sem Amigos,
Adrede.-

Bela Infanta

Estava a bela Infanta
No seu jardim assentada,
Com o pente de oiro fino
Seus cabelos penteava.
Deitou os olhos ao mar,
Viu vir uma enorme armada;
Capitão que nela vinha,
Muito bem que a governava.
- Dize-me, ó capitão
Dessa tua nobre armada,
Se encontraste meu marido
Na terra que Deus pisava?
"Anda tanto cavaleiro
Naquela terra sagrada...
Dize-me tu, ó senhora,
As senhas que ele levava.
- Levava cavalo branco,
Selim de prata doirada;
Na ponta da sua lnaç
A cruz de Cristo levava.
"Pelos sinais que me deste
Lá o vi numa estacada
Morrer morte de valente:
Eu sua morte vingava."
- Ai triste de mim viúva,
Ai triste de mim coitada!
De três filhinhas que tenho.
Sem nenhuma ser casada!...
"Que darias tu, senhora,
A quem no trouxera aqui?
- Dera-lhe oiro e prata fina,
Quanto riqueza há por hi.
"Não quero oiro nem prata,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem no trouxera aqui?
- De três moinhos que tenho,
Todos três tos dera a ti;
Um mói o cravo e a canela,
Outro mói do gerzeli:
Rica farinha que fazem!
Tomara-os el-rei p'ra si.
"Os teus moinhos não quero,
Não nos quero para mi:
Que darias mais, senhora,
A quem to trouxera aqui?
- As telhas do meu telhado
Que são oiro e marfim.
"As telhas do teu telhado
Não nas quero para mi:
Que darias mais, senhora
A quem no trouxera aqui?
- De três filhas que eu tenho,
Todas três te dera a ti:
Uma para te calçar,
Outra para te vestir
A mais formosa de todas
Para contigo dormir.
"As tuas filhas, infanta,
Não são damas para mi:
Dá-me outra coisa, senhora;
Se queres que o traga aqui.
- Não tenho mais que te dar,
Nem tu mais que me pedir.
"Tudo, não, senhora minha,
Que ainda te não deste a ti.
- Cavaleiro que tal pede,
Que tão vilão é de si.
Por meus vilões arrastado
O farei andar aí
Ao rabo do meu cavalo,
À volta do meu jardim.
Vassalos, os meus vassalos,
Acudi-me agora aqui!
"Este anel de sete pedras
Que eu contigo reparti...
Que é dela a outra metade?
Pois a minha, vê-la aí!
- Tantos anos que chorei,
Tantos sustos que tremi!...
Deus te perdoe, marido,
Que me ias matando aqui.

Nau Catrineta

Lá vem a Nau Catrineta
Que tem muito que contar!
Ouvide agora, senhores,
Uma história de pasmar.

Passava mais de ano e dia
Que iam na volta do mar,
Já não tinham que comer,
Já não tinham que manjar.

Deitaram sola de molho
Para o outro dia jantar;
Mas a sola era tão rija,
Que a não puderam tragar.

Deitaram sortes à ventura
Qual se havia de matar;
Logo foi cair a sorte
No capitão general.

- "Sobe, sobe, marujinho,
Àquele mastro real,
Vê se vês terras de Espanha,
As praias de Portugal!"

- "Não vejo terras de Espanha,
Nem prais de Portugal;
Vejo sete espadas nuas
Que estão para te matar."

- "Acim, acima, gageiro,
Acima ao tope real!
Olha se enxergas Espanha,
Areias de Portugal!"

- "Alvíssaras, capitão,
Meu capitão general!
Já vejo terras de Espanha,
Areias de Portugal!
Mais enxergo três meninas,
Debaixo de um laranjal:
Uma sentada a coser,
Outra na roca a fiar,
A mais formosa de todas
Está no meio a chorar."

- "Todas três são minhas filhas,
Oh! quem mas dera abraçar!
A mais formosa de todas
Contigo a hei-de casar."

- "A vossa filha não quero,
Que vos custou a criar."

- "Dar-te-ei tanto dinheiro
Que o não possas contar."

- "Não quero o vosso dinheiro
Pois vos custou a ganhar."

- "Dou-te o meu cavalo branco,
Que nunca houve outro igual."

- "Guardai o vosso cavalo,
Que vos custou a ensinar."

- "Dar-te-ei a Nau Catrineta,
Para nela navegar."

- "Não quero a Nau Catrineta,
Que a não sei governar."

- "Que queres tu, meu gageiro,
Que alvíssaras te hei-de dar?"

- "Capitão, quero a tua alma,
Para comigo a levar!"

- "Renego de ti, demónio,
Que me estavas a tentar!
A minha alma é só de Deus;
O corpo dou eu ao mar."

Tomou-o um anjo nos braços,
Não no deixou afogar.
Deu um estouro o demónio,
Acalmaram vento e mar;

E à noite a Nau Catrineta
Estava em terra a varar.

Adaptação de Almeida Garrett

Os treze anos (Cantilena)

Já tenho treze anos,
que os fiz por Janeiro;
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já bailo ao Domingo,
co' as mais no terreiro.

Já não sou Anita,
como era primeiro,
sou a senhora Ana,
que mora no oiteiro.

Nos serões já canto,
nas feiras já feiro,
já não me dá beijos
qualquer passageiro.

Quando levo as patas,
e as deito ao ribeiro,
olho tudo à roda
de cima do oiteiro;

E só se não vejo
ninguém pelo arneiro,
me banho co' as patas
ao pé do salgueiro.

Miro-me nas águas
rostinho trigueiro,
que mata de amores
a muito vaqueiro.

Miro-me, olhos pretos
e um riso fagueiro,
que diz a cantiga
que são cativeiro.

Em tudo, madrinha,
já por derradeiro,
me vejo mui outra
da que era primeiro.

O meu gibaão largo
de arminho e cordeiro,
já o dei à neta
do Brás cabaneiro,

Dizendo-lhe: "Toma
gibão domingueiro,
de ilhoses de prata,
de arminho e cordeiro.

"A mim já me aperta,
e a ti te é laceiro;
tu brincas co' as outras
e eu danço em terreiro."

Já sou mulherzinha;
já trago sombreiro;
já treze anos,
que os fiz em janeiro.

Já não sou Anita,
sou a Ana do oiteiro;
madrinha, casai-me
com Pedro Gaiteiro.

Não quero o sargento,
que é muito guerreiro,
de barbas mui feras,
e olhar sobranceiro.

O mineiro é velho;
não quero o mineiro;
mais valem treze anos
que todo o dinheiro.

Tão-pouco me agrado
do pobre moleiro,
que vive na azenha
como um prisioneiro.

Marido pretendo
de humor galhofeiro,
que viva por festas,
que brilhe em terreiro.

Que em ele assomando
co' o tamborileiro,
logo se alvorote
o lugar inteiro;

Que todos acorram
por vê-lo primeiro,
e todas perguntem
se inda é solteiro.

E eu sempre com ele,
romeira e romeiro,
vivendo de bodas,
bailando ao pandeiro.

Ai, vida de gostos!
ai, céu verdadeiro!
ai, páscoa florida,
que dura ano inteiro!

Da parte, madrinha,
de Deus vos requeiro:
casai-me hoje mesmo
com Pedro Gaiteiro.

Não queiram saber quem ele é (?)

Não queiram saber quem ele é.
Deixem-no andar
No tristíssimo segredo
Que o meu coração
Tem guardado avaramente!...

Quem ele é? - Não perguntem.
É um sonho, uma ilusão,
- Não é ninguém! Não é gente.

E teimam em perguntar
Quem é que assim me domina
Com tamanha realidade?

Não é ninguém! É um sonho
Que anda a ficar em saudade!

Em Ciúme
As Canções de António Botto, Livraria Bertrand, 1956, p.147

O Campino

Campino do Ribatejo!

Figura que nasce e morre
Nos campos da beira-mar!
Tão portuguesa e tão bela
Na sua simplicidade
Que até na sua pobreza
Nunca sabe mendigar!

Entre cavalos e toiros
Na lezíria assoalhada
A sua figura esbelta
Tem um encanto infinito:
Barrete verde; o colete
Encarnado sobre a neve

Da camisa de algodão;
Jaleca bem recortada,
Meia branca, os albardões,
As esporas, o calção
Azul cobalto justinho
E a cinta escarlate quente
Da cor do sangue ou do vinho.

Além, naquele valado,
As papoilas e o junquilho
Fazem trofeu, há mais luz!

Um harmónio no fadango
Vibra e salta no compasso
Magoadamente agitado!

Anda no ar o farrapo
Dolente de uma cantiga
Mordida pelo ciúme!

E o fandango vai dançado!

Ninguém se mexe. Só ele,
Bamboleado, rirail
Desempenado, perfeito,
- E as pernas? Como ele as dobra?

E aquela curva do peito?
Trás um cravo na orelha,
E dança, dança, - o harmónio
Vai-lhe graduando o alento,
A luz perturba, - mulheres
Ficaram mudas a olhá-lo!

A garotada assobia
Acentuando o mitovo
Musical, mas, a preceito;
E o Sol, apesar do dia
Nascer fosco e marralheiro,
Parece lume! - O fandango
Com a graça de um campino
É Portugal verdadeiro!

Ódio e Amor, Edições Ática, 1947

O Palácio da Ventura

Sonho que sou um cavaleiro andante.
Por desertos, por sóis, por noite escura,
Paladino do amor, busco anelante
O palácio encantado da Ventura!

Mas já desmaio, exausto e vacilante,
Quebrada a espada já, rota a armadura...
E eis que de súbito o avisto, fulgurante
Na sua pompa e aérea formusura!

Com grandes golpes bato à porta e brado:
Eu sou o Vagabundo, o Deserdado...
Abri-vos, portas d'ouro, ante maus ais!

Abrem-se as portas d'ouro, com fragor...
Mas dentro encontro só, cheio de dor,
Silêncio e escuridão - e nada mais!

Naufrágio

A rua cheia de luar
Lembrava uma noiva morta
Deitada no chão, à porta
De quem a não soube amar.

Já não passava ninguém...
Era um mundo abandonado...
E à janela, eu, tão Além,
Subia ressuscitado...

Vi-me o corpo morto, em cruz,
Debruçado lá no Fundo...
E a alma como uma luz
Dispersa em volta do mundo...

Mas, à tona do mar morto,
Um resto de caravela
Subia... E chegava ao porto
Com a aragem da janela.


Adolfo Casais Monteiro
Ode Ao Tejo E À Memória De Álvaro De Campos

E aqui estou eu,
ausente diante desta mesa —
e ali fora o Tejo.
Entrei sem lhe dar um só olhar.
Passei e não me lembrei de voltar a cabeça,
e saudá-lo deste canto da praça:
"Olá, Tejo! Aqui estou eu outra vez!"
Não, não olhei.
Só depois que a sombra de Álvaro de Campos se sentou a meu lado
me lembrei que estavas aí, Tejo.


Passei e não te vi.
Passei e vim fechar-me dentro das quatro paredes, Tejo!
Não veio nenhum criado dizer-me se era esta a mesa em que Fernando Pessoa se sentava contigo e os outros invisíveis à sua volta,
inventando vidas que não queria ter.
Eles ignoram-no como eu te ignorei agora, Tejo.


Tudo são desconhecidos, tudo é ausência no mundo,
tudo indiferença e falta de resposta.
Arrastas a tua massa enorme como um cortejo de glória, e mesmo eu que sou poeta passo a teu lado de olhos fechados,
Tejo que não és da minha infância,
mas que estás dentro de mim como uma presença indispensável,
majestade sem par nos monumentos dos homens,
imagem muito minha do eterno,
porque és real e tens forma, vida, ímpeto,
porque tens vida, sobretudo,
meu Tejo sem corvetas nem memórias do passado...
Eu que me esqueci de te olhar.

O Arquipélago das Sereias

Ó nau Catrineta
Em que andei no mar
Por caminhos de ir,
Nunca de voltar!

Veio a tempestade
Perder-se do mundo,
Fez-se o céu infindo,
Fez-se o mar sem fundo!

Ai como era grande
O mundo e a vida
Se a nau, tendo estrela,
Vogava perdida!

E que lindas eram
Lá em Portugal
Aquelas meninas
No seu laranjal!

E o cavalo branco
Também lá o via
Que tão belo e alado
Nenhum outro havia!

Mundo que não era,
Terras nunca vistas!
Tive eu de perder-me
Pra que tu existas.

Ó nau Catrineta
Perdida no mar,
Não te percas ainda,
Vem-me cá buscar!

Salamina

Irei morrer ainda a Salamina
Mesmo que da antiga perdida grandeza
Não reste mais do que desordem e ruína
Irei morrer ainda a Salamina
Pelo sol pela luz pela beleza

CHEGAR AQUI, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1984, 1ª edição, p. 41

Ilha de Cos

Eu sabia que tinha de haver um sítio
Onde o humano e o divino se tocassem
Não propriamente a terra do sagrado
Mas uma terra para o homem e para os deuses
Feitos à sua imagem e semelhança
Um lugar de harmonia
Com sua tragédia é certo
Mas onde a luz incita à busca da verdade
Eonde o homem não tem outros limites
Senão os da sua própria liberdade

CHEGAR AQUI, Edições João Sá da Costa, Lisboa, 1984, 1ª edição, p. 31

Para João XXIII

Porque não sei de Deus não trago preces.
Sou apenas um homem de boa vontade.
Creio nos homens que acreditam como tu nos homens
creio no teu sorriso fraternal
e no teu jeito de dizer
quase como quem semeia
as palavras que são
trigo da vida.
Creio na paz e na justiça
creio na liberdade
e creio nesse coração terreno e alto
com raízes no céu e em Sotto il Monte
De Deus não sei. Mas quase creio
que Deus poisou nas mãos cheias de terra
dum jovem camponês de Sotto il Monte.

Por isso mando à Praça de S. Pedro
não uma prece
mas a minha canção fraterna e livre
esta canção
que vai pedir-te a humana benção
João XXIII avô do século.

A PRAÇA DA CANÇÃO, CENTELHA, COIMBRA, 1975, P. 58

Livreiro da Esperança

Há homens que são capazes
duma flor onde
as flores não nascem.
Outros abrem velhas portas
em velhas casas fechadas há muito
Outros ainda despedaçam muros
acendem nas praças uma rosa de fogo.
Tu vendes livros quer dizer
entregas a cada homem
teu coração dentro de cada livro.

A PRAÇA DA CANÇÃO, CENTELHA, COIMBRA, 1975, P. 57

Crónica dos Filhos de Viriato

História: não a que vem nos livros
com fogueiras de Deus nos campos de Sant'Ana
com santos e guerreiros e façanhas e milagres
com bandeiras e naus no Terreiro do Paço.
Dos mitos nada sei. Falo dos vivos
dos que todos os dias ficam vencidos em Sagres
no mar dum íntimo cansaço

Dos que sempre adiaram o seu 5 de Outubro
derrotados nas salas dum escritório
filhos de Viriato submetidos aos romanos
no Império da Grande Capitulação.
Filhos de Viriato. (E já Sertório
em todos eles foi traído ou gasto pelos anos).
Só não morreu ainda El-Rei Sebastião.

E os que esperam ainda nas naus romãnticas
lusíadas parados no Rossio
filhos de Viriato pálidos e desarmados
falam em D. Sebastião à mesa dos cafés
os que não se afogaram nas águas atlânticas
frustrados habitantes dum navio
que nunca foi além dos sonhos adiados
marinheiros de agosto que molham no mar os pés.

E ainda aqueles que se vão todos os dias
não em busca das Índias mas do pão que falta
filhos de Viriato nos caminhos dos Brasis
porque os romanos nada lhes deixaram.
Terras do Alentejo - Bartolomeu Dias
passando além da fome em cada herói da malta.
Eu falo dos heróis sem nome dum país
onde os romanos sobre os homens se assentaram.

Dos homens falo. Nada sei dos mitos.
Homens de mil trezentos e oitenta e cinco
esperando em mil novencentos e sessenta e três
a verdadeira independência do país.
Dos homens falo. Suas tragédias seus ritos
sua maneira de perder e seu afinco
em tentar mais uma vez
E ficam uns em Sagres vão outros para os Brasis.

Falo da história que não vem na História.
(A que na escola me ensinaram já esqueci.
Aprendi o passado nos restos do passado).
Falo de Sagres. Dos que estão em Sagres.
Não dos antigos plainos da memória
vos trago os meus heróis. Ei-los aqui:
filhos de Viriato (e já Sertório assassinado)
lusíadas sem pão e sem milagres.

A PRAÇA DA CANÇÃO, CENTELHA, COIMBRA, 1975, P. 48

Bicicleta de Recados

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Pedalo nas palavras atravesso as cidades
bato às portas das casas e vêm homens espantados
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Na minha bicicleta de recados
eu vou pelos caminhos.
Vem gente para a rua a ver a novidade
como se fosse a chegada
do João que foi à Índia
e era o moço mais galante
que havia nas redondezas.
Eu não sou o João que foi à Índia
mas trago todos os soldados que partiram
e as cartas que não escreveram
e as saudades que tiveram
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

Desde o Minho ao Algarve
eu vou pelos caminhos.
E vêm homens perguntar se houve milagre
perguntam pela chuva que já tarda
perguntam pelos filhos que foram à guerra
perguntam pelo sol perguntam pela vida
e vêm homens espantados às janelas
ouvir o meu recado ouvir minha canção.

Porque eu trago notícias de todos os filhos
eu trago a chuva e o sol e a promessa dos trigos
e um cesto carregado de vindima
eu trago a vida
na minha bicicleta de recados
atravessando a madrugada dos poemas.

A PRAÇA DA CANÇÃO, CENTELHA, COIMBRA, 1975, P. 46

As mãos

Com mãos se faz a paz se faz a guerra
Com mãos tudo se faz e se desfaz
Com mãos se faz o poema - e são de terra.
Com mãos se faz a guerra - e são a paz.

Com mãos se rasga o mar. Com mãos se lavra.
Não são de pedra estas casas mas
de mãos. E estão no fruto e na palavra
as mãos que são o canto e são as armas.

E cravam-se no Tempo como farpas
as mãos que vês nas coisas transformadas.
Folhas que vão no vento: verdes harpas.

De mãos é cada flor cada cidade.
Ninguém pode vencer estas espadas:
nas tuas mãos começa a liberdade.

O CANTO E AS ARMAS, CENTELHA, COIMBRA, 1974, 3ª EDIÇÃO, P. 121

Quinto Poema do Pescador

Eu não sei de oração senão perguntas
ou silêncios ou gestos ou ficar
de noite frente ao mar não de mãos juntas
mas a pescar.

Não pesco só nas águas mas nos céus
e a minha pesca é quase uma oração
porque dou graças sem saber se Deus
é sim ou não.

Lisboa, 9.12.96

Trova do Vento que Passa

Pergunto ao vento que passa
notícias do meu país
e o vento cala a desgraça
o vento nada me diz.

Pergunto aos rios que levam
tanto sonho à flor das águas
e os rios não me sossegam
levam sonhos deixam mágoas.

Levam sonhos deixam mágoas
ai rios do meu país
minha pátria à flor das águas
para onde vais? Ninguém me diz.

Se o verde trevo desfolhas
pede notícias e diz
ao trevo de quatro folhas
que eu morro por meu país.

Pergunto à gente que passa
por que vai de olhos no chão.
Silêncio - é tudo o que tem
quem vive na servidão.

Vi florir os verdes ramos
direitos e ao céu voltados.
E a quem gosta de ter amos
vi sempre os ombros curvados.

E o vento não me diz nada
ninguém diz nada de novo.
Vi minha pátria pregada
nos braços em cruz do povo.

Vi minha pátria na margem
dos rios que vão pró mar
como quem ama a viagem
mas tem sempre de ficar.

Vi navios a partir
(minha pátria à flor das águas)
vi minha pátria florir
(verdes folhas verdes mágoas).

Há quem te queira ignorada
e fale pátria em teu nome.
Eu vi-te crucificada
nos braços negros da fome.

E o vento não me diz nada
só o silêncio persiste.
Vi minha pátria parada
à beira dum rio triste.

Ninguém diz nada de novo
se notícias vou pedindo
nas mãos vazias do povo
vi minha pátria florindo.

E a noite cresce por dentro
dos homens do meu país.
Peço notícias ao vento
e o vento nada me diz.

Quatro folhas tem o trevo
liberdade quatro sílabas.
Não sabem ler é verdade
aqueles pra quem eu escrevo.

Mas há sempre uma candeia
dentro da própria desgraça
há sempre alguém que semeia
canções no vento que passa.

Mesmo na noite mais triste
em tempo de servidão
há sempre alguém que resiste
há sempre alguém que diz não.

A PRAÇA DA CANÇÃO, CENTELHA, COIMBRA, 1975, P. 102

Adamastor

Fui a sombra do medo;
Esse medonho vulto que o luar
Esboça, no arvoredo,
Quando o perfil do vento é de gelar;
E, nas encruzilhadas dos caminhos,
Há demónios e doidos burburinhos...
E os homens, entre lívidos terrores,
Abraçam negra dor desconhecida,
Dor morta e ressurgida,
Aquela dor, fantasma de outras dores.

A minha Aparição,
Os nautas assustava,
Quando, em fraguedos, saibro, escuridão,
Sinistro promontório, as ondas penetrava;
E o meu rouco bramido retumbava,
Por toda a neptunina solidão.

Eu, dantes, fui a Treva...
Minha sombra, depois, amanheceu;
Tingiu-se de oiro e rosa; e já se eleva,
Na luz do céu...

Chorei, deli meus ossos fragarosos,
Reconstruindo em carne de beleza,
Meus grandes membros tenebrosos;
Minhas feições de terra e de bruteza...

Sou a alma do trágico Gigante;
Esse terror do antigo navegante,
Revelada em perfeita claridade.

Eu sou o Adamastor em alma de saudade.

Sempre, 2ª edição, Coimbra, 1902

A Noite Rimada

Pela serra ao luar
ia um menino sozinho
sem sono pra se deitar.

Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono pra se deitar.

Ia o menino a pensar
que há tanto por pensar
e a cidade a descansar.

Ia o menino a pensar
porque seria ele só
sem sono pra se deitar.

Quem dorme sem ter pensado
deve ter sono emprestado
não é sono bem ganhado.

Ia o menino a pensar
como poder arranjar
muita força pra pensar.

Ia o menino a arranjar
muita força pra pensar
o próprio sonho ganhar

A BUNDA, QUE ENGRAÇADA

A bunda, que engraçada.
Está sempre sorrindo, nunca é trágica

Não lhe importa o que vai
pela frente do corpo. A bunda basta-se.
Existe algo mais? Talvez os seios.
Ora - murmura a bunda - esses garotos
ainda lhes falta muito que estudar.

A bunda são duas luas gêmeas
em rotundo meneio. Anda por si
na cadência mimosa, no milagre
de ser duas em uma, plenamente.

A bunda se diverte
por conta própria. E ama.
Na cama agita-se. Montanhas
avolumam-se, descem. Ondas batendo
numa praia infinita.

Lá vai sorrindo a bunda. Vai feliz
na carícia de ser e balançar.
Esferas harmoniosas sobre o caos.

A bunda é a bunda,
redunda

COXAS BUNDAS COXAS

Coxas
bundas
lábios
cheiros

bundas
coxas
línguas
vulvas

coxas
bundas
unhas
céus
terrestres
infernais
no espaço ardente de uma hora
intervalada em muitos meses
de abstinência e depressão.

Viagem

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar...
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos).

Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura...
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.

Civilização Ocidental

Latas pregadas em paus
fixados na terra
fazem a casa

Os farrapos completam
a paisagem íntima

O sol atravessando as frestas
acorda o seu habitante

Depois as doze horas de trabalho
escravo

Britar pedra
acarretar pedra
britar pedra
acarretar pedra
ao sol
à chuva
britar pedra
acarretar pedra

A velhice vem cedo

Uma esteira nas noites escuras
basta para ele morrer
grato
e de fome.

Noite

Eu vivo
nos bairros escuros do mundo
sem luz nem vida.

Vou pelas ruas
às apalpadelas
encostado aos meus informes sonhos
tropeçando na escravidão
ao meu desejo de ser.

São bairros de escravos
mundos de miséria
bairros escuros.

Onde as vontades se diluíram
e os homens se confundiram
com as coisas.

Ando aos trambolhões
pelas ruas sem luz
desconhecidas
pejadas de mística e terror
de braço dado com fantasmas.

Também a noite é escura.

Gerações

Nomes sem rosto
corações esfaqueados
de lembranças
nas lágrimas de crianças
chorando pelos pais...

Mais do que a morte
que os fez calar
em cada gota de lágrima
a cena cruel

...uma mãe que gemia
sem forças seu corpo desenhava
marcas da angústia
esgotada

Os farrapos que a cobriam
rasgados
no ruído da sua própria carne
sob o selvático escárnio
dos soldados indonésios
em cima dela, um por um

Já inerte, o corpo da mulher
se tornou cadáver
insensível à justiça do punhal
que a libertara da vida

enquanto...
golpes de coronhadas
se repercutiam
nas gotas de lágrimas que iam caindo
da mesma face das crianças

Um pai se ofendera
no último não da sua vida
a mulher violada
assassinada sob os seus olhos

O cheiro da pólvora
vinha de muitos furos
daquele corpo
que já não era corpo
estendido
sem forma de morte

e...

As lágrimas secaram
nas lembranças das crianças
veio o suor da luta
porque as crianças cresceram

Quando os jovens seios
estremecem sob o choque eléctrico
e as vaginas
queimadas com pontas de cigarro
quando testículos de jovens
estremecem sob o choque eléctrico
e os seus corpos
rasgados com lâminas
eles lembram-se, eles lembram-se sempre:

A luta continuará sem tréguas!

Oh! Liberdade!

Se eu pudesse
pelas frias manhãs
acordar tiritando
fustigado pela ventania
que me abre a cortina do céu
e ver, do cimo dos meus montes,
o quadro roxo
de um perturbado nascer do sol
a leste de Timor

Se eu pudesse
pelos tórridos sóis
cavalgar embevecido
de encontro a mim mesmo
nas serenas planícies do capim
e sentir o cheiro de animais
bebendo das nascentes
que murmurariam no ar
lendas de Timor

Se eu pudesse
pelas tardes de calma
sentir o cansaço
da natureza sensual
espreguiçando-se no seu suor
e ouvir contar as canseiras
sob os risos
das crianças nuas e descalças
de todo o Timor

Se eu pudesse
ao entardecer das ondas
caminhar pela areia
entregue a mim mesmo
no enlevo molhado da brisa
e tocar a imensidão do mar
num sopro da alma
que permita meditar o futuro
da ilha de Timor

Se eu pudesse
ao cantar dos grilos
falar para a lua
pelas janelas da noite
e contar-lhe romances do povo
a união inviolável dos corpos
para criar filhos
e ensinar-lhes a crescer e a amar
a Pátria Timor!

(Xanana Gusmão, Mar Meu/My Sea of Timor, Porto, Granito, 1998

domingo, 29 de julho de 2007

Camões, grande Camões, quão semelhante


Camões, grande Camões, quão semelhante

Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!

Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,

Arrostar co'o sacrílego gigante.


Como tu, junto ao Ganges sussurante,

Da penúria cruel no horror me vejo.

Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,

Também carpindo estou, saudoso amante.


Ludíbrio, como tu, da Sorte dura

Meu fim demando ao Céu, pela certeza

De que só terei paz na sepultura.


Modelo meu tu és, mas . . . oh, tristeza! . . .

Se te imito nos transes da Ventura,

Não te imito nos dons da Natureza.

A Música da Morte

cruz.jpg

João da Cruz e Souza nasceu em 21 de novembro de 1861 em Desterro, hoje Florianópolis, Santa Catarina. Seu pai e sua mãe, negros puros, eram escravos alforriados pelo marechal Guilherme Xavier de Sousa. Ao que tudo indica o marechal gostava muito dessa família pois o menino João da Cruz recebeu, além de educação refinada, adquirida no Liceu Provincial de Santa Catarina, o sobrenome Sousa.

Apesar de toda essa proteção, Cruz e Souza sofreu muito com o preconceito racial.Cruz e Souza morreu em 19 de março de 1898 na cidade mineira de Sítio, vítima de tuberculose. Suas únicas obras publicadas em vida foram Missal e Broquéis.

Cruz e Souza , sem sombra de dúvidas, o mais importante poeta Simbolista brasileiro, chegando a ser considerado também um dos maiores representantes dessa escola no mundo. Muitos críticos chegam a afirmar que se não fosse a sua presença, a estética Simbolista não teria existido no Brasil. Sua obra apresenta diversidade e riqueza.

De um lado, encontram-se aspectos noturnos, herdados do Romantismo como por exemplo o culto da noite, certo satanismo, pessimismo, angústia, morte, etc. Já de outro, percebe-se uma certa preocupação formal, como o gosto pelo soneto, o uso de vocábulos refinados, a forma das imagens etc. Em relação a sua obra, pode-se dizer ainda que ela tem um caráter evolutivo, pois trata de temas até certo ponto pessoais como por exemplo o sofrimento do negro e evolui para a angústia do ser humano.



A Música da Morte, a nebulosa,
estranha, imensa musica sombria,
passa a tremer pela minh’alma e fria
gela, fica a tremer, maravilhosa…

Onda nervosa e atroz, onda nervosa,
letes sinistro e torvo da agonia,
recresce a lanciante sinfonia,
sobe, numa volúpia dolorosa…

Sobe, recresce, tumultuando e amarga,
tremensa, absurda, imponderada e larga,
de pavores e trevas alucina…

E alucinando e em trevas delirando,
como um ópio letal, vertiginando,
os meus nervos, letárgica, fascina…

Fonte: site - Jornal de poesia http://jornaldapoesia.wordpress.com/

Ao desconcerto do mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

sábado, 28 de julho de 2007

No Farol da Guia

Pedi ao Farol da Guia,
Pra que a nau não naufragasse
Na noite que fôr o dia,
Que fosse luz e a guiasse.

E pedi mais:
Que baloiçasse no ar
Os sinais
Do tufão que vai chegar,
Pra que ao abrigo do cais
A nau achasse lugar.

E o primeiro farol
De aviso à navegação
No mundo onde nasce o Sol,
Não me disse sim nem não.

Mas a âncora ancorada,
Como fanal de bonança,
Entre os muros da esplanada,
Disse, sem me dizer nada:
- Tem esperança!

Bocage

Naquele ano fatal da Grande Perdição
Que deflagrou, no mundo, un nouvel âge,
Chegou aqui surgido de Cantão,
Pra onde o arrebatara o furor de um tufão,
poeta Bocage.

Achou a terra decadente e estranha
E a gente ora mendiga ora devassa.
E enquanto, num soneto, a satiriza, entoa
Meigas estrofes à "magnânima Saldanha"
(Marília, ao celebrar-lhe a formusura e a graça)
E um hino de lisonjas à "preclara Hulhoa"

Quase um ano inteiro (quase uma vida inteira!)
Por Macau bocejou e vageou à toa.
Mas, por mercê de Lázaro Ferreira,
Um dia, enfim, pôde enrolar a esteira
E voltar a Lisboa.

sexta-feira, 27 de julho de 2007

Maconge

Maconge,
É Sonhar...
É pensar nos outros, ajudar!
É caminhar pela estrada,
É correr, é ficar parada,
É sorrir na caminhada,
É trabalhar muito,
É não fazer nada...
É cantar, mesmo desafinado,
É estar triste de vez em quando,
É chorar quando apetece,
É olhar um jardim que floresce...
Maconge, é amar!...

Fonte: Real República de Maconge

HINO DO LICEU

Viva a malta do Liceu
Viva a malta sempre fixe
Quem não pensa como eu
que se mate ou que se lixe, lixe, lixe.

A malta ganhou a taça
Sem ter nada que fazer
Quem quiser ganhar à malta
Tem um osso p'ra roer, roer, roer

HEI!Avante companheiros
HEI!Avante com afã
Que os pequenos desordeiros
São os Homens de amanhã, manhã, manhã.

HINO DOS FINALISTAS DO LICEU DIOGO CÃO

Adeus ó sétimo ano
Adeus ó serra da Chela
Adeus ó trabalho insano
Adeus ó fita amarela

Ó garotas graciosas
Que nos fitam a sorrir
Das vossas bocas formosas
Atirai um beijo a rir

Viva a malta bandalheira
Do liceu a fina flôr
Não chamem segunda-feira
Professores por favor.

Real República de Maconge
Sá da Bandeira-Lubango
Angola

Real República de Maconge

Canção na morte de nga-Caxombo

Olho nga-Caxombo ali
na esteira
deitado morto
a todo comprimento

Vejo-o caminhar sem descanso
do Amboim ao Seles
do Seles ao quipeio
outra vez ao Seles
rotas sem rota mato longe
quem que sabia?

Tipoia o ombro pesava que pesava
duramente Zua
e voz de Kalandu
voz serena do sertão
ele a escutava
através do fogo
através da água
o geito sem raizes
de amar o coração das coisas.

Olho-o pela vez última
na luz rasante desse dez de Julho
a barba á monangamba
cavada sua negra face
morto
deitado morto
a todo o comprimento.

Medo no ar!

Medo no ar!

Em cada esquina
sentinelas vigilantes incendeiam olhares
em cada casa
se substituem apressadamente os fechos velhos
das portas
e em cada consciência
fervilha o temor de se ouvir a si mesma

A História está a ser contada
de novo

Medo no ar!

Acontece que eu
homem humilde
ainda mais humilde na pele negra
me regresso África
para mim
com os olhos secos.

Agostinho Neto
Consciencialização
“Sagrada Esperança”

A UMA QUISSAMA

E na manhã fria, nevada
dessas manhãs de cacimbo
em que uma alma penada
não se lembra de ir ao limpo,
eu vi formoso, correcta
não sendo europeia dama
a mais sedutora preta
das regiões da Quissama.

Mal quinze anos contava
e no seu todo brilhava
o ar mais doce e gentil!
Tinha das mulheres lindas
as graças belas, infindas
de encantos, encantos mil.

Nos lábios, postos que escuros,
viam-se-lhe risos puros
em borboletões assomar.

Tinha nos olhos divinos
revérberos cristalinos
e fulgores... de matar!

Radiava-lhe na fronte
— como em límpido horizonte
radia mimosa luz,
da virgem casta a candura
Que sói à formosura
a graça que brota à flux!...
Embora azeitados panos
lhe cobrissem os lácteos pomos
denunciavam os arcamos
de dois torneados gomos...

Criar

criar criar
criar no espírito criar no músculo criar no nervo
criar no homem criar na massa
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
sobre a profanação da floresta
sobre a fortaleza impúdica do chicote
criar sobre o perfume dos troncos serrados
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
gargalhadas sobre o escárnio da palmatória
coragem nas pontas das botas do roceiro
força no esfrangalhado das portas violentadas
firmeza no vermelho sangue da insegurança
criar
criar com os olhos secos

Criar criar
estrelas sobre o camartelo guerreiro
paz sobre o choro das crianças
paz sobre o suor sobre a lágrima do contrato
paz sobre o ódio
criar
criar paz com os olhos secos

Criar criar
criar liberdade nas estradas escravas
algemas de amor nos caminhos paganizados do amor
sons festivos sobre o balanceio dos corpos em forcas simuladas
criar
criar amor com os olhos secos.

POEMA DA ALIENAÇÃO

Não é este ainda o meu poema
o poema da minha alma e do meu sangue
não

Eu ainda não sei nem posso escrever o meu poema o grande poema que sinto já circular em mim

O meu poema anda por aí vadio
no mato ou na cidade
na voz do vento
no marulhar do mar
no Gesto e no Ser

O meu poema anda por aí fora
envolto em panos garridos
vendendo-se
vendendo

“ma limonje ma limonjééé”

O meu poema corre nas ruas
com um quibalo podre à cabeça

oferecendo-se
oferecendo

“carapau sardinha motona
jí ferrera ji ferrerééé”

O meu poema calcorreia ruas
“olha a probíncia” “diááário”
e nenhum jornal traz ainda
o meu poema

O meu poema entra nos cafés
“amanhã anda a roda amanhã anda a roda”
e a roda do meu poema
gira que gira
volta que volta
nunca muda

“amanhã anda a roda
amanhã anda a roda”

O meu poema vem do Musseque
ao Sábado traz a roupa
à Segunda leva a roupa
ao Sábado entrega a roupa e entrega-se
à Segunda entrega-se e leva a roupa

O meu poema está na aflição
da filha da lavadeira
esquiva
no quarto fechado
do patrão nuinho a passear
a fazer apetite a querer violar

O meu poema é quitata
no Musseque à porta caída duma cubata

“remexe remexe
paga dinheiro
vem dormir comigo”

O meu poema joga a bola despreocupado
no grupo onde todo o mundo é criado
e grita

“obeçaite golo golo”

O meu poema é contratado
anda nos cafezais a trabalhar
o contrato é um fardo
que custa a carregar

“managambééé”

O meu poema anda descalço na rua

O meu poema carrega sacos no porto
enche porões
esvazia porões
e arranja força cantando

tué tué trr
arrimbuim puim puim”

O meu poema vai nas cordas
encontrou cipaio
tinha imposto, o patrão

esqueceu assinar o cartão
vai na estrada
cabelo cortado

“cabeça rapada
galinha assada
ó Zé”

picareta que pesa
chicote que canta

O meu poema anda na praça
trabalha na cozinha
vai à oficina
enche a taberna e a cadeia
é pobre roto e sujo
vive na noite da ignorância
O meu poema nada sabe de si
nem sabe pedir
O meu poema foi feito para se dar
para se entregar
sem nada exigir

Mas o meu poema não é fatalista
o meu poema é um poema que já quer
e já sabe
o meu poema sou eu-branco
montado em mim – preto
a cavalgar pela vida.

Romance

Stela era a minha pequenina namorada
nos tempos da minha infância descuidada!
Para colher o nascer do sol que tinha na boca
eu corria as barrocas e os areais vermelhos do meu bairro
e lutava assanhado com outros miúdos brancos e pretos.
De noite, quando havia muitas estrelas
e o céu era um buraco muito escuro
eu deitava-me na areia vermelha e quente do meu bairro
e no seu colo de menina.
ficava calado a sentir o tempo passar.

O miúdo Artur cobiçava-ma
e que dor grande me doía cá dentro
se os via juntos a falar.
Uma vez, numa noite, de mãos dadas,
sentindo o vendo molhado do tempo das chuvas,
eu disse-lhe apontando para o alto:
aquela e a minha estrela, qual é a tua?
E todas as noites
ficávamos deitados naquela minha rua antiga do Musseque Braga
a espiar as estrelas que brincavam no céu.

Stela era a minha pequena namorada
nos tempos da minha infância descuidada!
Por ela eu lutava com sardões de todos os tamanhos,
subia cajueiros impossível de subir
e era sempre o primeiro nas corridas.
Ela dava-me os santos que escondia de todos
como se fora o tesouro da ilha dos piratas.
E eu ficava muito sério como quando me batiam.
Um dia a minha pequenina namorada deixou o meu bairro.
Nesse dia não corri, não lutei,
não subi aos cajueiros do Musseque Braga
e os outros miúdos mais novos disseram: está doente.
E à noite, sozinho, procurei as duas estrelas
e chorei como se tivesse apanhado
a maior tareia da minha vida!
Stela era a minha pequenina namorada
nos tempos da minha infância descuidada!

Maracujá

Um dia
o pé de maracujá
que eu plantei no quintal
cresceu
e floriu

Eu nunca tinha visto
a flor do maracujá.

Juro por Deus nunca vi
coisa mais linda do mundo
do que a flor violeta
do pé de maracujá
que eu plantei
Na cerca do meu quintal

Um dia
o maracujá
que eu plantei no meu quintal
cresceu e floriu...

Libertação

Das mentiras loucas que me envolvem
Vou quebrando os liames um a um
E da angústia da libertação
Nascerá um dia a paz
Do ser e do não ser.

Das mentiras vãs que me amordaçam
Os véus arrancarei a um e um
Tristes despojos dum passado velho
Que em mim se quis perpetuar.

E deixarei um rasto de desilusões;
Um caminho de lágrimas choradas;
Um pouco do que fui em cada dia.

Mas ficarei seguro e afirmado,
Com a serenidade dum Buda na floresta,
Com a nudez dum Cristo no redil.


(Permanência ) Lisboa, Edições 70

Aqui não há esperança

Aqui não há esperança
Aqui é tudo espesso igual e morno
Até onde a vista alcança
Ó sombras do caminho
Nada se define em torno
Aqui tudo são brumas
Movediço e ilusório

O que se vê são sombras não as árvores
São imagens não as coisas
E as estrelas após tantos mistérios
Ainda são almas em sonhos merencórios
Tudo aqui é uniforme. Onde se apalpa
Sente-se o decompor dos corpos mortos
E a cada passo - uma barreira
E a cada luz - um véu de trevas
E em cada bússola os ponteiros tortos
Na luta somos desiguais
No amor somos mentiras
Na vida somos estéreis
Se temos coração
É para o rasgarmos dia a dia em tiras
(Ó lobos dos caminhos
Fauces de angústia em ânsias de apetite
Comei-nos a boca e os braços
Imolai-nos de vez à vossa fome
E uivai depois felizes aos espaços)
Aqui tudo é dúbio e vacilante
Num chão de trincheiras os espectros
Andam fugindo de ódios que os corroem
Claras bandeiras de matizes claros
Refugiam-se nas sombras por que doem
Tudo aqui se amortalha nos mistérios
Borbotões de vida que cessaram
Dão passo à serenidade
Caiada e estéril dos cemitérios
Tudo o que se come tem sabor a mastigado
Tudo o que se ouve é como já ouvido
O presente é um fruto descascado
E o futuro é um canto repetido
Andam os répteis a banhar-se em luz
Andam morcegos a comer os fogos
Aninham-se sapos em doçuras moles
E andam as almas a acalentar malogros
(Lobos dos pinhais de fauces tenebrosas
Vinde roer-nos o olhar e a mão
Vinde matar-nos e uivar contentes
À serenidade do tempo na amplidão)
Tudo aqui é derrota sem batalhas
Tudo aqui é um rugir de reses
Tudo aqui são pálidas mortalhas
A fingir de cotas e a fingir de arneses
Andam flores a desabrochar para quê?
Para que andam aves a voar no vale?
Para que andam trigos a doirar ao sol?
Para que brilha na parede a cal?
Sonhos de sonhos a subir alados
Tremulas mãos a tatear os pomos
E enforcados
Secam na árvore os apetecidos gomos
Deitam-se as redes mas o mar é sóbrio
Olha-se a lua mas a lua é morta
Cravam-se os cravos mas o casco é inútil
Bate-se a aldrava mas não se abre a porta
Tudo aqui é tranqüilo como os mortos
Tudo aqui é sonâmbulo e vencido
Tudo aqui é cavo como um sorvo
Imóvel como um olhar estarrecido
(Ó lobos dos caminhos
Que a fauce negra entreabris lasciva
Vinde seguros acabar conosco
E uivar alegres à eternidade altiva)
E não nos dêem uma alma
Para que sobreviva.

(Permanência) Lisboa, Edições 70

Donas do outro tempo

Donas do outro tempo
Vejo-as neste retrato amarelado:
Como estranhas flores desabrochadas
Negras, no ar, soltas, as quindumbas.

Panos garridos nobremente postos
E a posição hierática dos corpos.
São três sobre as esteiras assentadas
Numa longínqua tarde de festejo.
(Tinha ancorado barco lá no rio?
Havia bom negócio com o gentio?
Celebrava-se a santa milagrosa
Tosca, tornada cúmplice de pragas
Carregada de ofertas, da capela?)
A seu lado, sentados em cadeiras,
Três homens de chapéu, colete e laço.
Botinas altas, botas de cheviote.

Donas do tempo antigo, que perguntas
Poderia fazer aos vossos olhos
Abertos para o obturador da fotográfica?
Senhoras de moleques e discípulas
Promotoras de negócios e quitandas
Rendilheiras de jinjiquita e lavarindo
Donas que percebíeis a unidade
Íntima, obscura, do mistério e do desígnio
Atentas ao acaso que é a vida
(Há sopros maus no vento! Gritos maus
No rio, na noite, no arvoredo!)
E que, porque sabíeis que a vida é larga e vária
E vários e largos os caminhos possíveis
A nova fé vos destes, confiantes,

O que ficou de vós, donas do outro tempo?
Como encontrar em vossas filhas de hoje
A vossa intrepidez, a vossa sabedoria?

Os tempos são bem outros e mudados.
A tarde da fotografia, irrepetível.
Água do rio Cuanza não pára de correr
Sempre outra e renovada.
E dessa fotografia talvez hoje só exista
Na vilória onde as casas são baixas e fechadas
E têm corpo, pesam, as sombras e o calor
A sombra farfalhante da mulemba
Que vos deu sombra e fresco nesse domingo antigo.

( 1999, Obra poética

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