quinta-feira, 31 de dezembro de 2009

A voz...

Chega num eco
vindo dos sonhos
que não conhecem barreiras
nem limites...
Chega num murmúrio de amor,
Que arde, que ferve de dor,
Chega num gemido, num rasto de alegria
Que corre nas veias,
Que grita na alma,
Que tece teias
de paixão,
de sentimento,
de ilusão..
Chega uma voz
(no silêncio de palavras escritas)
Ou quem sabe um eco,
um simples murmúrio,
ou até um gemido
sumido,
quase desaparecido
que assalta a consciência
Que enche de sentido o sentido da existência
E que faz inalar a verdadeira fragrância
desse sentimento feito de felicidade e dor
A que alguém concedeu o nome de Amor...

Pombal, 05 de Fevereiro de 2002

PONHO A MESA DE AZEVINHO

Neste mosto de Natal
Com luzes sem tal e qual
Como as que guardo da infância
Rasgo o poema num galho
Que desdobro na memória
À lareira da lembrança

É feito das minhas ondas
Que se derretem no olhar
Entre presépios desfeitos
E sinos a badalar

E na toalha de linho
D'uma avó que já não tenho
Celebro a pauta da vida
Em canto sem ter tamanho

É Hino aberto ao pulsar
D'uma Estrela sem Belém
Vai no regato do sangue
P'ró musgo da minha Mãe

Ponho a mesa d'azevinho
Com palhas de fios de lã
Com chaminés de poemas
Soltos em grãos de romã

E em jantar onde me sento
Com olhos de ver em mim
Trilho saudades do tempo
Em ceia de mar sem fim

Nozes,passas,figos secos
Licores-doces,doces-vinhos
Rabanadas,filhós,sonhos
Cantilenas de carinhos

Sapatinhos, botas,socas
Mais um madeiro a queimar
O frio da Missa do Galo
E a neve deste gelar

E no cruzar do caminho
Num alpendre sem ter nome
Um Cristo a dormir sozinho
Em Natal que foge a monte...

Maria José Praça (N.126080 da SPA)

Os imprescindíveis

Há homens que lutam um dia, e são bons.
Há outros que lutam um ano, e são melhores.
Há aqueles que lutam muitos anos, e são muito bons.
Há, porém, os que lutam toda a vida.
Estes são os imprescindíveis.

terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Masqui ramendá unga tosco bote - poema em Patuá de Macau

Masqui ramendá unga tosco bote,
Largado na mar co ónda picánte,
Quim pôde isquecê acunga dote
Qui já dá vôs grandura di gigánte!
Pa quim buscá luz, vôs sandê candia;
Quim passá fome, vêm aqui têm pám;
Pa quim ta fuzi, susto ventania,
Vôs dá teto co paz na coraçám.

quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Picada de marimbondo

Junto da mandioqueira
perto do muro de adobe
vi surgir um marimbondo

Vinha zunindo
cazuza!
Vinha zunindo
cazuza!

Era uma tarde em Janeiro
tinha flores nas acácias
tinha abelhas nos jardins
e vento nas casuarinas,
quando vi o marimbondo
vinha voando e zunindo
vinha zunindo e voando!

Cazuza!
Marimbondo
mordeu tua filha no olho!

Cazuza!
Marimbondo
foi branco que inventou...


terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Carta-Prefácio de Couto Viana para Rodrigo Emílio

Carta-Prefácio de Couto Viana para Rodrigo Emílio

via nonas by nonas on 12/22/09
CARTA-PREFÁCIO
de António Manuel Couto Viana
Caro Rodrigo Emílio:
Deste exílio
português
que celebraste tanta vez,
venho dar-te os parabéns.
Contra o ódio e os desdéns
que te perseguem o talento,
hoje, lançam-te ao vento
da glória que mereces,
teus poemas, caudais de invectivas e preces;
sátiras de sangue
sobre quem mutilou a Pátria exangue;
os lirismos de amores
(aromas subtis de delicadas flores,
a enflorarem-te o coração);
o brado do teu não
corajoso, à nacional demência;
a resistência
e valentia
que sublimam a tua poesia;
o louvor ao herói das novas sagas,
como tu, militar em exóticas plagas.
Parabéns. Neste livro, flutuam teus versos
(quantos os desejam submersos!),
que hão-de escaldar de luz
a alma que reduz,
apontando o mais além,
a quem,
traidor, mesquinho,
quis fazer Portugal Portugalzinho.
Ao invés, tu sonhaste um alto fado,
vestido de soldado.
E a tua asa de poeta,
o teu burel de asceta
na humildade da nua solidão
recusaram o lar e o pão,
pela aleluia
da tua própria companhia.

Caro Rodrigo Emílio,
agora, em santo idílio
com Deus que te sagrou e a Virgem que cantaste,
branca rosa na haste
de Fátima dos lenços e das velas,
nunca açoitada plas procelas,
tempestades iguais aos pecados do mundo,
recebe o ser profundo,
existente na tua antologia,
nosso maior e assombroso guia.
(Também aqui saúdo quem a fez
bíblia do carácter português!).
Quem não há-de adorá-la,
evocá-la,
comungá-la,
se é o nosso pensamento em sua fala?
Templo
exemplo,
leite da nossa mãe
bebido em todo o sempre. Amen!

Sou quem busca imitar-te,
no fulgor da tua arte,
na luta sem quartel.
Perdão, se o não consigo.
Mas recolhe a admiração do amigo
António Manuel.


29 de Novembro de 2009.
In Antologia Poética de Rodrigo Emílio, págs.9/10,
Areias do Tempo Associação e Editorial, Coimbra, 2009.

domingo, 20 de dezembro de 2009

Identidade

Preciso ser um outro
para ser eu mesmo

Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem insecto

Sou areia sustentando
o sexo das árvores

Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço


A TI MUJER DE ALMA VIVA

PASADO EL TIEMPO HE LLEGADO A LA CONCLUSION
DE QUE NADIE PODRA ENTENDER JAMAS
EL SENTIR DE UN CORAZON ENAMORADO

CUANDO TE HIERE EL AMOR
NADA PUEDE DETENERLO

DALE TIEMPO
DALE ESPACIO

MUJER DE ALMA EN
FUEGO

ARDIENTE CORAZON
SANGRANTE
SOLO SINTIENDOLO
SABRAS QUE EL AMOR
ES SUPERIOR AL ODIO

EN EL AMOR ESTA TODO PERMITIDO

AMA CON FUERZA
AMA CON ENTREGA
AMA CON TODO
SOLO EL AMOR ES INVENCIBLE

Y YO …YO …. TAMBIEN LO SOY

Walter poeta jardinero del AMOR

sexta-feira, 18 de dezembro de 2009

Natal (poema em prosa)

via Angola: os poetas by kinaxixi on 12/17/09
Há anos, na noite de Natal, numa cubata do mato angolense, uma família de tribo indígena, em cujos corações já soara a mensagem divina através da palavra portuguesa, celebrava, na sua ingenuidade pitoresca, o nascimento do Filho de Deus, à maneira da civilização cristã.

Havia uma nota originalíssima no figurativo quadro clássico. Ao canto da cubata estava construído um pequeno presépio feito de adobe, com capim e folhas de palmeira, com os reis magos e pastorinhos e, deitado em esteira de mabu, o monandengue Jesus, boneco feito de pau, pintado de preto.

Eis o milagre do amor no Natal de Cristo.
Há vinte séculos Jesus Cristo nasceu, numa manjedoura, em Belém de Judeia. Mas todos os anos através dos tempos, neste dia, ele nasce nos palácios sumptuosos e choupanas da Ásia, nas vivendas ricas e casinhotas da Europa, nos arranha-céus colossais e bairros pobres das Américas, nas cidades e vilas da África, sob a música dos sinos e das harpas, e já nas sanzalas típicas da África Negra, ao som dos quissanges e marimbas.
Na sua materialidade exótica, aquele quadro da cubata revelava a verdade eterna do espírito, não ofendida nem falseada: Jesus nasce no coração de cada ser humano, em todos os povos e raças, porque Ele é, milagrosamente, o Deus-Menino de toda a gente.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Poema de Luto Pesado por Rodrigo Emílio

via nonas by nonas on 12/14/09
(Em memória e louvor do Tenente-Coronel
MAGGIOLO DE GOUVEIA e de mais sessenta
PORTUGUESES, fuzilados em TIMOR pelos
facínoras comunistas da Fretilin)

Para o Pedro Rocha, a quem este poema e
respectivo autor tantíssimo devem...

Tu viste, do céu?...
Assististe, Senhor,
à chacina de Ailéu
(algures, em Timor)?!...

Viste a morte cruenta
e sangrenta
— tal como aquela que se dá às rezes... —
que sofreram 50 ou 60
Portugueses?!...

Viste como esses perseguidos
se persignaram, em português,
por môr de Dili
— e à hora da morte, unidos,
ali ajoelharam,
uma última vez
diante de Ti?...

E viste, viste também
(à flor da ilha que lhes foi berço
e lhes foi cova duradoura),
como todos, em côro, rezaram o terço
a Tua Santa Mãe,
Nossa Senhora?!...

Não deixaste sequer de reparar
que, mal a oração final
por ali se pronuncia —
eles, todos, em coral,
desataram a cantar
ao Coração Virginal
de Maria!...
... ... ...

Finalmente,
puseram-se de pé.

E à frente
de tão nobre gente,
há então quem dê
um último e ardente
testemunho de fé.

É o Tenente-Coronel
MAGGIOLO DE GOUVEIA
— que não cura de salvar a pele,
mas a epopeia!

Em nome de todos, disse isto,
Senhor!,
às fardas cruéis
que os iam matar:

«Morremos por CRISTO
e por TIMOR.
Podeis
disparar».

Rodrigo Emílio

In Poemas de Braço ao Alto, págs. 98/99.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

As Belas Meninas Pardas

via O Lupango da Jinha on 12/15/09

AS BELAS MENINAS PARDAS

As belas meninas pardas
são belas como as demais.
Iguais por serem meninas,
pardas por serem iguais.

Olham com olhos no chão.
Falam com falas macias.
Não são alegres nem tristes.
São apenas como são
todos dos dias.

E as belas meninas pardas,
estudam muito, muitos anos.
Só estudam muito. Mais nada.
Que o resto, trás desenganos>>>

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

Nos passeios de domingo,
andam sempre bem trabajadas.
Direitinhas. Aprumdas.
Não conhecem o sabor que tem uma gargalhada
(Parece mal rir na rua!...)

E nunca viram a lua,
debruçada sobre o rio,
às duas da madrugada.

Sabem muito escolarmente.
Sabem pouco humanamente.

E desejam, sobretudo, um casamento decente...

O mais, são histórias perdidas...
Pois que importam outras vidas?...
outras raças?... , outros mundo?...
que importam outras meninas,
felizes, ou desgraçadas?!...

As belas meninas pardas,
dão boas mães de família,
e merecem ser estimadas...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Memória. faria hoje 72 anos ...

via As Causas da Júlia by juliacoutinho@gmail.com (Júlia Coutinho) on 12/7/09
(7.12.1937 - 18.1.1984)


Meu Camarada e Amigo
Revejo tudo e redigo
meu camarada e amigo.
Meu irmão suando pão
sem casa mas com razão.
Revejo e redigo
meu camarada e amigo

As canções que trago prenhas
de ternura pelos outros
sem das minhas entranhas
como um rebanho de potros.
Tudo vai roendo a erva
daninha que me entrelaça:
canção não pode ser serva
homem não pode ser caça
e poesia tem de ser
como um cavalo que passa.

É por dentro desta selva
desta raiva deste grito
desta toada que vem
dos pulmões do infinito
que em todos vejo ninguem
revejo tudo e redigo:
Meu camarada e Amigo.

Sei bem mas mós que moendo
pouco a pouco trituraram
os ossos que estão doendo
àqueles que não falaram.

Calculo até os moinhos
puxados a ódio e sal
que a par dos monsos marinhos
vão movendo Portugal
- mas um poeta só fala
por sofrimento total!

Por isso calo e sabejo
eu que só tenho o que fiz
dando tudo mas à toa:
Amigos no Alentejo
alguns que estão em Paris
muitos que são de Lisboa.
Aonde me não revejo
é que eu sofro o meu país.

José Carlos Ary dos Santos, in «Resumo»

sexta-feira, 4 de dezembro de 2009

Poema calado

Vou fazer prá você
um lindo poema,
sem letras, sem til,
sem acentos ou trema.

Poema de olhares,
sorrisos e acenos;
alguns tão doces,
outros obscenos.

Poema de risos,
perfeita harmonia,
tão belo na forma,
só pura alegria.

Poema sem falas,
de olhares constantes,
invadindo teu ser
à todo instante.

Agora, abra a alma
e receba então
o poema calado
do meu coração.

Fonte: Recanto das Letras em 21/07/2007 - Código do texto: T574269

Vontade de Deus

via Banco da Poesia by cdeassis on 12/3/09

Se é vontade de Deus
Eu ser um pingo de chuva
Na esquecida sonolência
Dum rastro d'onda perdida
Eu ser eco ou ser brisa
Ser suspiro ou ser grito
Ou ser uma estrela cadente
Morrendo no infinito…

Se é vontade de Deus
Eu ter de lutar, de gemer,
E de sentir o que sente
O dia fugindo desfeito
Nos dedos frios da noite…

Se é vontade de Deus
Eu ser una ou ser múltipla…
Ser segundo, hora ou dia…
Ser raiz feita flor
Ou ser um caminho aberto
Por onde os pobres desfilam,

Esse será o meu destino
E será minha ventura…
Porque aquele que procura
E anseia por um além
Encontra sempre um bem
No mal que a vida tem.

Um Poema de Olhares

I
Tenho papel, tenho caneta
Mas não me apetece escrever
e… preciso, preciso tanto
Fazer um poema
Um poema sem escrever.

Para quê papel?
Para quê caneta?
O papel tem que se guardar
Por vezes, esconder
Tem-se medo de o perder
Ah, cria nervos!...
E a caneta?
Pesa, incomoda!
Para quê tanta preocupação?

II
É mais prático
E duradoiro
Fazer-se um poema sem palavras
Um poema de olhares
De um olhar longo e dengoso
Ou de olhares pequeninos e furtivos.
Silenciosos…
Tímidos e envergonhados.

Uff, que bom!...
Não há papel, não há caneta, não há palavras
Apenas silêncios e olhares!...

Que me leiam
O poema que escrevo
Pelos olhares que faço.

E em troca do meu fazer
Eu quero
Que leiam o que escrevo
Com os olhares que me fazem
Também eles longos e dengosos
Pequeninos e furtivos.
Silenciosos…
Tímidos e envergonhados.

Rui Moio, elaborado a 19Nov09, pelas 12h00, no Sabores do Parque, no Hospital Júlio de Matos, Lisboa

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Um grande amor

Um grande amor

via Fernanda de Castro by António Quadros Ferro on 12/1/09

Um grande amor não cabe em nenhum verso,
como a vida não cabe num jardim,
como não cabe Deus no Universo
nem o meu coração dentro de mim.

A noite é mais pequena do que o luar,
e é mais vasto o perfume do que a flor.
É a onda mais alta do que o mar.
Não cabe em nenhum verso um grande amor.

Dizer em verso aquilo que se pensa,
ideia de poeta, ideia louca.
Não é bastante a frase mais extensa,
diz mais o beijo do que diz a boca.

Ninguém deve contar o seu segredo.
Versos de amor, só se os fizer assim:
como os pássaros cantam no arvoredo,
como as flores se beijam no jardim.

Que verso incomparável, infinito,
feito de sol, de misterioso brilho,
poderia dizer o que, num grito,
diz a mulher quando lhe nasce um filho?

E quando sobre nós desce a tristeza,
como desce a penumbra sobre o dia,
uma lágrima triste e sem beleza,
diz mais do que a palavra nua e fria.

Redondilha de amor... Para fazê-la,
desse-me Deus a tinta do luar,
a candeia suspensa de uma estrela
e o tinteiro vastíssimo do mar.

Fernanda de Castro - Jardim, (1928)

A minha sina

A minha sina

via Angola: os poetas by kinaxixi on 12/1/09
É sem norte a minha vida,
e n'um mar revolto vivo;
escravo de dura lida
eu sou a tudo captivo;
atraz do ignoto corro,
e na lucta eu soffro, eu morro

terça-feira, 1 de dezembro de 2009

SE FORES À FONTE, LISBOA !

Sentei-me à mesa do fado
Embriaguei-me de mim
Deitei-me em pontos finais
Entre memórias de cantos
Soluçando mares de prantos
À vela dos meus sinais

Não me levaram de mim
Que o Fado não é assim
Não vai indo nem vogando
É impressão digital
É A -Dê -Ene fatal
Que finge a fingir que é dor
A dor que vai na corrente
A dor que deveras sente

Se fores à fonte, Lisboa
Bebe a água dos meus ais
E no manto do teu rio
Escreve o meu cantar a fio
Com retinas soletradas
E ondas enrodilhadas
No tempo do teu navio ...

mariajosépraça. (N.126080 da SPA) -Setembro 2009 -

O silêncio não tem palavras

O silêncio não tem palavras.
Mas fala mais do que muitas palavras.
Nem sempre. Às vezes.
O olhar não tem voz.
O olhar não tem palavras.
Mas também fala mais do que muitas palavras.
Nem sempre. Também só às vezes.
Basta calar a voz.
E o silêncio fala.
Basta condensar uma frase numa lágrima.
E o olhar fala.
Sim, quantas vezes se fala sem falar,
Sem usar a voz,
Usando o silêncio,
Usando o olhar...
E quantas vezes falamos sem querer falar,
Tão simplesmente com o olhar?
Quantas vezes pronunciamos o que não queremos
Tão simplesmente com o silêncio que fazemos?

Pombal, 17 de Outubro de 2001

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Velada de Almas, em véspera da Perda da Independência

Velada de Almas, em véspera da Perda da Independência

via MANLIUS by José Carlos on 11/30/09
VELADAS D'ARMAS E D'ALMAS

À memória do 1.º cabo, António de Oliveira
Paulino, meu devoto e sempre lembrado
condutor-auto.

1.

A dois dedos da madrugada
me adianto
para o camarada
morto — e canto, canto

como quem aponta uma espada
ao espaço do próprio espanto!...

Fixar-lhe a face fechada
é agasalhá-lo no manto
do tempo que arrecada
e cujo tampo levanto

É calcorrear uma estrada
com memórias a cada canto,
entoar a mais bela balada
do desencanto.

E não há nada
que valha tanto!

A dois dedos da madrugada
— canto!, canto…
Camarada:
Em pranto, canto!

2.

Quedou sempre manhã cedo
Na vida do camarada
Que o degredo não degrada,
Vem a medo, bem-amada

E singra e sangra em segredo
(E singra e sangra, sagrada)

3.

Pelas alturas se altera
Que outra vida o persuade
A ficar, em sonho, à espera
— À espera da eternidade…

Hoje é indício de enseadas
Além-Morte (A Morte vence-o,
Com o cilício e as ciladas
Do seu solene silêncio…)

4.

Agora, ei-lo a sós
Por trás da muralha
Do sono, e da voz
Que o silêncio agasalha

Da guerra descansa,
Em paz — tal maré
Sobre quem só é lembrança
Ou mais que lembrança é.

5.

Moída mais que por mós
A memória dá recado
De um coração que por nós
Bate apesar de enterrado.

Concha do chão, sonho a sós,
Na morte o encontro marcado
Do silêncio com a voz,
Do presente com o passado.

Veio a noite, e a paz após.
De vala a vala embalado,
Ali jaz, sono sem foz,
Em solidão o soldado

Atrás do remorso atroz
Que punge e chaga do lado
De um coração que por nós
Bate apesar de enterrado…

Pela dádiva desmedida
Do eterno camarada

Levo o tempo de vencida
E trago na minha vida
A morte dele hospedada!

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Luanda

Gosto dela à noite
a horas esquecidas

Gosto dela quando mais
ninguém anda cá fora
e a sinto toda minha…

O sei corpo grande e negro
é quente e generoso,
e os ruídos no escuro
cães ladrando, carros longe
galos, meninos chorando…
fazem uma sinfonia
morna, calma e tropical
como se fosso o respirar
de alguém que descansa.

É por isso

Que eu gosto de Luanda
a horas esquecidas…

Olho o seu corpo, grande,
o seu corpo negro e generoso
e sinto uma ternura especial

Como se fosse o corpo conhecido
duma amante saciada e adormecida
que se olha com amor e com cansaço
e depois se recorda com saudade.


terça-feira, 17 de novembro de 2009

Soneto de Inês

Boa Poesia, de um Bom Poeta

via MANLIUS by José Carlos on 11/17/09

Dos olhos corre a água do Mondego
os cabelos parecem os choupais
Inês! Inês! Rainha sem sossego
dum rei que por amor não pode mais.

Amor imenso que também é cego
amor que torna os homens imortais.
Inês! Inês! Distância a que não chego
morta tão cedo por viver demais.

Os teus gestos são verdes os teus braços
são gaivotas poisadas no regaço
dum mar azul turquesa intemporal.

As andorinhas seguem os teus passos
e tu morrendo com os olhos baços
Inês! Inês! Inês de Portugal.

terça-feira, 10 de novembro de 2009

O FADO É PORTUGUÊS

O FADO É PORTUGUÊS

via Lisboa no Guiness by Apontamentos Amalianos on 11/10/09

O Fado é tão português, que, de arnês,
bateu-se em Fez;
esteve em Alcácer-Quibir;
arrostou o mar profundo
e ao Mundo
deu novo Mundo,
na senda de Descobrir!
Esteve em Malaca e Ormuz
e, à luz
do signo da Cruz,
construiu impérios novos;
da Guiné até Timor,
com ardor,
foi defensor
do Destino doutros povos!
Fê-lo Deus aventureiro:
foi guerreiro
e marinheiro;
missionário, ou de má-rês
e — vá ele p' ra' onde for —
¬cante a dor,
ou cante o amor,
o que canta é Português!

domingo, 8 de novembro de 2009

DÁ-ME UM TRAGO DE TRIPEIRO

Dá-me uma gota de ti
N'uma palavra que seja
Despida d'outros sinais
Que não sejam vendavais
De rasgos soltos aos ais
De gaivotas a cantar
Do peito do teu lugar

Dá-me uma flor desfolhada
Com seiva d'água na boca
E lonjuras de moinhos
Com alquimias de vento
A rasgar céus em pedaços
E a bater no coração
Das espigas da minha mão

Dá-me um chá preto-das-cinco
E o Bolero de Ravel
Com a pauta trauteada no pulso da tua pele
Dá-me um trago de tripeiro
Em qualquer cave sem pé
Com medronhos soletrados
Ao sabor da tua fé...

Maria José Praça (N.126080 da SPA)

E OS HOMENS DA TERRA...

E os homens da terra
Sentaram-se! Frutos silvestres
Emprestaram sabedoria e sombra
Poeiras campestres
Abençoaram papeladas
E acordos nos matos das picadas!

Um vento a soprar agreste
As terras do leste
Falou-me d’homens sentados
Em troncos e pedras
A falarem acordos e palavras
E obuses de canhões silenciados!

A taça do sangue das armas
Entornou-se! Batuques e lágrimas
Das gentes magricelas
A espreitar homens da terra
Sentados, a falarem paz em palavra
E sonhos e acordos d’estrelas!

A tumba dos homens apagados
Em camuflados e botas
Aplaudiram palmas
Kazumbis e almas
Dançaram alegria nas matas
E homens sentaram pedras d’acordos!

E as patentes da terra
Conversaram! Calaram-se ruídos
E fuzis d’homens fardados
A barulhar palavras e guerras
Conversam os homens nas pedras
E nos troncos dos acordos!

E os homens da terra conversaram!

Luanda, 26 de Novembro de 2007.
in "Xé Candongueiro"

sábado, 7 de novembro de 2009

O meu sentido

Sou feita de Mar,
Amor e Poesia.
Sou sonhadora, prudente, teimosa, insaciável...
Tenho qualidades e defeitos,
como qualquer ser humano.
Vivo de sensações: cheiros, sabores, toques.
Gosto de caminhar,
aprender e trilhar rotas ainda não descobertas.
Sou uma Pessoa...
com sonhos, desejos, projectos, ideias e ideais.
Com sede e fome de mais.

Nota: adaptação ao formato de poema por Rui Moio

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Canto interior de uma noite fantástica

via Angola: os poetas by kinaxixi on 11/5/09
Sereno, mas resoluto
aqui estou – eu mesmo! – gritando desvairado
que há um fim por que luto
e me impede de passar ao outro lado.

ante esta passagem de nível
nada de fáceis transposições
do lado de cá – pareça embora incrível
é que me meço: princípio e fim das multidões.

não quero tudo quanto me prometem aliciantes
nada quero, se para mim nada peço,
o meu desejar é outro – o meu desejo é antes
o sesejo dos muitos com que me pareço.

quem quiser que venha comigo
nesta jornada terrena, humana e sincera
e se for só – ainda assim prossigo
num mar de tumulto, impelindo os remos sem galera

que venham glaucas ondas em voragem
que ardam fogos infernais
que até os vermes tenham a coragem
de me cuspir no rosto e no mais.

que os lobos uivem famintos
que os ventos redemoinhem furiosos
que até os répteis soltem seus instintos
e me envolvam traiçoeiros e viscosos.

que me derrubem e arremessem ao chão
que espezinhem meu corpo já cansado
à tortura e ao chicote ainda responderei não
e a cada queda – de novo serei alevantado.
e não transportarei a linha divisória
entre o meu e o outro caminho
mesmo que a minha luta não tenha glória
é no campo de combate que alinho.

assim continuarei a lutar, ai a lutar!
num perigoso mar de paixões e escolhos
e – companheiros – se neste sofrer me virdes chorar
não acrediteis em vossos olhos!

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

"UM POVO IMBECILIZADO E RESIGNADO....

"UM POVO IMBECILIZADO E RESIGNADO....

via DA TAILÂNDIA COM AMOR E HUMOR by Jose Martins on 11/4/09



"Um povo imbecilizado e resignado,
humilde e macambúzio,
fatalista e sonâmbulo,
burro de carga,
besta de nora,
aguentando pauladas,
sacos de vergonhas,
feixes de misérias,
sem uma rebelião,
um mostrar de dentes,
a energia dum coice,
pois que nem já com as orelhas
é capaz de sacudir as moscas;
um povo em catalepsia ambulante,
não se lembrando nem donde vem,
nem onde está,
nem para onde vai;
um povo, enfim,
que eu adoro,
porque sofre e é bom,
e guarda ainda na noite da sua inconsciência
como que um lampejo misterioso
da alma nacional,
reflexo de astro em silêncio escuro
de lagoa morta (...)
.
Uma burguesia,
cívica e politicamente corrupta ate à medula,
não descriminando já o bem do mal,
sem palavras,
sem vergonha,
sem carácter,
havendo homens
que, honrados (?) na vida íntima,
descambam na vida pública
em pantomineiros e sevandijas,
capazes de toda a veniaga e toda a infâmia,
da mentira à falsificação,
da violência ao roubo,
donde provém que na política portuguesa sucedam,
entre a indiferença geral,
escândalos monstruosos,
absolutamente inverosímeis no Limoeiro (...)
.
Um poder legislativo,
esfregão de cozinha do executivo;
este criado de quarto do moderador;
e este, finalmente, tornado absoluto
pela abdicação unânime do país,
e exercido ao acaso da herança,
pelo primeiro que sai dum ventre
- como da roda duma lotaria.
-
A justiça ao arbítrio da Política,
torcendo-lhe a vara
ao ponto de fazer dela saca-rolhas;
Dois partidos (...),
sem ideias,
sem planos,
sem convicções,
incapazes (...)
vivendo ambos do mesmo utilitarismo
céptico e pervertido, análogos nas palavras,
idênticos nos actos,
iguais um ao outro
como duas metades do mesmo zero,
e não se amalgamando e fundindo, apesar disso,
pela razão que alguém deu no parlamento,
de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar (...)"

Guerra Junqueiro, in "Pátria", escrito em 1896

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Olhai que ledos vão


Olhai que ledos vão
Os nossos soldados
De blusa branca de comando
De botas e camuflado
G3 ao lado

Olhai que ledos vão
Os nossos soldados
Com vigor batem na calçada
Na cadência da marcha cantam
Cânticos de guerra de Cabinda
Do Rovuma, do Cumbidjã

Olhai que orgulhosos vão
Os nossos soldados
À frente os estandartes que servem
Numa profusão de vermelhos e verdes

Com o rufar dos tambores
Sonhamos glórias
Estamos certos
Temos razão, cheira-nos vitória
Milhares de guerreiros
A uma só voz
Como uma muralha
Infundem respeito
E gritam
Estamos aqui

Estes soldados
São o espelho
Da sociedade que somos e cremos
De todas as cores e sem raças
Sem egoísmos, sem fraquezas
São heróis
Da guerra e de princípios

Estes soldados
Somos NÓS

Rui Moio, 12Jun2008. Poema concebido e elaborado pelas 16h00 no café A Presidente na avenida Conde de Valbom em frente à galeria Valbom onde se expunham quadros de Malangatana.

Avenida Marquês de Tomar

É Verão.
Há sol e sombras
Há meninas e mulheres
Adolescentes e casadoiras
Que passam ligeiras.
Há soutiens apertados
E umbigos trementes
Calças e rebordos de lingerie.
Há verdura, jovialidade e encanto.

É meio dia.
As ruas enchem-se
De gente bonita, asseada.
São mais fémeas que machos
Vintonas e trintonas
Gente não apressada
Não há crianças
Não há ruídos ensurdecedores
Não há velhos entorpecidos.
Há burguesia.
À vista não há pobreza e coisas feias.
Automóveis novos, lavados
Em andamento moderado
De tintas mais cinzentas que coloridas

Há um nome de rua
Ou de avenida
Neste Bairro Novo
Não muito quadriculado
Com um toque de intimidade
De memória, de grandeza...

Habitualmente, sem sobressalto
Desfrutam-se as estruturas
Que os nossos avós nos deixaram.
Sem ameaças de as termos que defender
De inimigos usurpadores.
Há paz e normalidade

Vive-se, vivendo.
Vê-se, vendo.
Sonha-se, sonhando.
Ouve-se, ouvindo.
Pensa-se, pensando.

E isto existe
Vê-se, do Talismã

Na avenida Marquês de Tomar
Na cidade capital
Da minha Lisboa.

Rui Moio, 19Jun2008. Poema Avenida Marquês de Tomar, elaborado pelas 13h15 na Pastelaria Talismã, sita na Avenida Marquês de Tomar, no Bairro das Avenidas Novas, em Lisboa.

domingo, 1 de novembro de 2009

África Nossa

África:
dos encontros, dos desencontros e dos reencontros;
dos sentidos e das emoções;
das paixões e das contradições.

África:
dos amantes ardentes e dos amores fugazes;
dos sonhos váguos e por realizar;
da esperança tornada impossibilidade.

África:
do desejo recriado;
da vontade alimentada;
das recordações revividas... dia após dia.

Feira da Ladra -1

via Atrás da lente de Paula Cabeçadas em 01/11/09
Nova Feira Da Ladra

É na Feira da Ladra que eu relembro
uma toalha velha, toda em linho,
que já serviu uma noite de Dezembro,
e agora cheira a Setembro,
como o Outono sabe a vinho.
Não valem muito mais que dois pintores
os quadros das paisagens
que eu já sei,
mas valem, pelos frutos, pelas flores
que em São Vicente das Dores,
fora de mim, eu pintei.

O que é que eu vou roubar à Feira?
Um beijo de mulher trigueira.
Aqui um coração, ali uma gravura.
É a Feira da Ladra ternura.
O que é que eu vou trazer da Feira?
Um corpo de mulher braseira.
Aqui está um lençol, bordado como dantes.
Esta Feira da Ladra é dos amantes.

E na Feira da Ladra nos vingamos
dum pouco desse tempo que morreu.
Em cada botão velho que compramos
há sempre uma corja de amos
que em Abril, Abril venceu.
Agora não compramos velharias,
tudo passado é lastro do futuro.
Nascemos para o sol todos os dias,
na nossa Feira da Ladra
já não há ladrões no escuro.

O que é que eu vou roubar à Feira?
Um beijo de mulher trigueira.
Aqui um coração, ali uma gravura.
É a Feira da Ladra ternura.
O que é que eu vou trazer da Feira?
Um corpo de mulher braseira.
Aqui está um lençol, bordado como dantes.
Eis a Feira da Ladra dos amantes.

Ary dos Santos














Sátira ao prometido aumento de vencimentos em Janeiro de 1959

Surge Janeiro frio e pardacento,

Descem da serra os lobos ao povoado;
Assentam-se os fantoches em São Bento,
E o Decreto da fome é publicado.
Edita-se a novela do Orçamento;
Cresce a miséria ao povo amordaçado;
Mas os biltres do novo parlamento
Usufruem seis contos de ordenado.
E enquanto à fome o povo se estiola,
Certo santo pupilo de Loyola,
Mistura de judeu e de vilão,
Também faz o pequeno "sacrifício"
De trinta contos, - só! - por seu ofício,
Receber, a bem dele... e da nação.
Em 1959 no dia de uma reunião de antigos alunos, assino este soneto

quinta-feira, 29 de outubro de 2009

Se a minha terra é de cor!...

A minha terra tem cor.

eu não conheço outra terra
onde haja tanta beleza
nas síncopes coloridas
dum fim de tarde…

inda está p’ra ser fadado
um tão nevado luar
que derrame tanto leite
em noites de lua cheia…

no meu corpo bronzeado,
na minh’alma cor de neve,
na minha terra tão linda,
há orgias embriagantes
de cor.

- se a minha terra é de cor!...

na chaga sangrenta
da rubra queimada
sem fim,
queimando dentro de mim,
e no passado negrume
de certas noites sem lua;
e com o lume apagado
no rutilante luzeiro
do Cruzeiro,
onde foi crucificada
a minha Raça,

- a minha terra tem cor!

nos frutos tão bons,
nas águas imensas,
nos campos lavrados,
nos céus anilados,
nos corpos tão negros
de pretos,
de pretas,
nas estrelinhas trementes,
- lágrimas de Deus
derramadas
pelos negros inocentes
há doces tonalidades
mistérios
suavidades,
cambiantes fascinantes
de cor

- se a minha terra é de cor!...


sexta-feira, 23 de outubro de 2009

Soneto de um talento

Soneto de um talento

via Insistimento de Marcos Rezende em 23/10/09


Nasci, cresci, mas não sou dono de mim
Conheço lugares, conheço pessoas, mas não sei quem sou
Perco-me mais em mim do que em lugares distantes
Fico só, mesmo rodeado de minhas "amigas" personalidades

Já ouvi dizer que sou grande e que posso ser feliz
Li diversos textos que me entusiasmam a crescer
Mas a crueldade com que me esponho diante do espelho
É maior que o maior de meus zelos por mim mesmo

E nessa infelicidade dura e crua da vida
Que mastigo devagar enquanto observo a felicidade alheia
Respiro e transpiro pudor por libertar-me

Assim, visto-me de outros "eus" para satisfazer ao mundo
E tranco minha melhor roupa dentro do armário de meu ego
Para não mostrar ao mundo todo meu talento e ser feliz uma vez ao menos

Alma viva

via Jornalista Incidental de Gilson Junior em 09/08/09

Se a noite tem magia?
Nada além de estrelas e vozes e astronaves!
O jeito fosco e afobado de escondermos as mãos
É um pedaço de outro início
E a luz que desce fria traça cruzes entre os membros.
Há apenas inumanos de onde viemos,
No que lemos.

A incerteza das palavras e a virtude dos sorrisos
São formas de encanto aceitáveis
Nas ordens sem início.
De onde vêm as orações?
Dos muros dos conventos.

E é certo que aquela voz na caixa desigual
Desenhada com correntes
Têm letras coloridas
E luzes e estradas
Tudo é magia inteira.

São inventos, são espantos pros que erguem-se em outra santidade
E tudo é construção de nossas mentes
Tecidas nos verões inconsequentes, na seriedade dos indícios
Que nos libertam,
Nos fazem escravos
E entre os vícios e as canções,
Nos fazem amor.

Luas frias dão vontade
De termos canções brejeiras.
Há magia na verdade?
Só aquelas em teu rosto
Ao notar-se alma viva.

O pensador

via Angola: os poetas de kinaxixi em 22/10/09
ao artista desconhecido, autor da
mais conhecida escultura angolana

Ela está sentada,
a mãe-pensador.
está cuidadosamente sentada
entre a vida e a morte,
para lá de toda a gente.
ela está sentada,
a mãe-genitor,
sobre o seu andor.
mas não como a senhora dos ausentes.
nem como a virgem dos doentes,
nem como a nossa senhora das dores.
ela não tem nada
a mãe-pensador.
não tem morte
nem vida
nem sul
nem norte
nem cima nem baixo,
nem cor…
nem dó.

a mãe-pensador é nós,
na nossa mente.
ela é a nossa longa consciência.
Ela não tem senão u velho pó
Como palavras justas em roda duma oval.
ela não tem senão a força
e toda a ciência
da sua oval talhada
num pedaço de ideia universal.

sem contrair nenhum nervo,
sem pronunciar uma palavra
sem alargar o nó do seu dorso
ela é cereal na nossa lavra,
ela é uma luz no nosso acervo.
ela é nós, sem qualquer esforço.

mãe-pensador serena e nua
entre a morte eterna
e a vida imortal
tiradas um pouco a toda a gente
como um tributo à flor habitual
que fica entre o sul e a lua
eternamente…

ela está toda enrodilhada
em volta do seu nó
dentro do qual desfila em parada
toda a nossa miséria militante,
como num outro gueto, onde vive um povo
sem galileia nem Jericó
entre a paz e a guerra
entre cassinga e soweto,
nervoso e hesitante, mas não só.

ela está sentada num tronco de pau-preto
num taco de pau terra
com profundas raízes na nossa mente.
e é como o fluxo sintético
que vem pelo campo fora
repensando o povo
ao longo de um milénio,
mestiçando de novo
a consciência de agora,
irredutivelmente.

ela está sentada no seu génio hieráctico
sentada no seu modo diacrónico,
a porta do seu túmulo transparente.
ela geme imperceptivelmente
o seu gemido rouco e desarmónico
que soa em nós por dentro e por fora
num cântico diatónico.

ela não tem sombra
a mãe-pensador.
ela não tem bafo
nem sangue nem suor.
ela é a sombra
ela é o bafo
ela é o amor…

a mãe-pensador não está de pé.
cotovelos assentando nos joelhos
olhos cerrados em grão de café,
está sentada meticulosamente
escutando tudo
olhando toda a gente.
Básica e serena como ela é,
vendo tudo detalhadamente.
mãe-pensador
mudamente ambígua…
tua cabeça pensa adormecida
o ser e o nada da nossa vida,
e murmura num gemido ritual
o som de tão perigosa vizinhança,
dessa misteriosa condição contígua
da derrota que precede a vitória da esperança.
e o som gemido, rouco e atonal
como a fórmula básica dum singular perito,
sonoriza a rigorosa oval
onde de debate o nó do conflito
que germina uma formosa ideia.
e as equações da morte e da vida
vão do principio ao fim do infinito
abraçadas entre as trevas e a luz
tecendo a nossa teia.

o teu cérebro antiquíssimo regista
essa unidade vagarosa, imemorial
que se cria pela história a perder de vista
e nada serpenteia.

a voz murmurada do cântico expontâneo
que exala da terra e se reproduz
pelas chanas arasadas do mussende
como prece pagã que repercute
no céu da catedral dum velho crâneo,
ressoa ainda uma cantata em ut,
rodopia ainda uma dança em redondo,
que foram missa negra em ditirambo
na belicosa véspera de kalendende,
na aurora sangrenta de angoleme akitambo
no raiar da vitória do kifangondo.

ela olha e vê
do seu toco de pau tempo
a marcha saturnal de tanta gente
corrompendo a esperança,
activando os medos,
gargalhando as suas risadas soturnas
palavreando os seus discursos loucos.

os olhos apagados como estrelas diurnas,
ela olha e vê pelos seus longos dedos,
ela olha e vê paulatinamente
toda aquela gente
a morrer aos poucos.

com seu sorriso de estrela reservada
a mãe-pensador olha e vê,
os nomes que sobraram na história da coragem,
que não morrem aos poucos, nem tão pouco
doutra maneira mais sofisticada.

ela olha e vê do cimo do seu toco
seus antigos companheiros de viagem:
o príncipe ilunga – que recusou a guerra –
e a formosíssima princesa lweji,
amarem-se na paz e no calor da terra
de uma outra chana de lwameji
onde as begónias se cruzam com os fetos
mestiçando a flora.

ela olha e vê
pelo tempo fora,
o cortejo de filhos e de netos
dos filhos dos netos dos bisnetos,
habitarem cada campo e cada canto
desta pátria que foi mundo novo.

e a mãe-pensador
como quem cisma,
sorri então todo o seu espanto
e goza de olhos postos em si mesma
a formidável linhagem do seu povo.

Henrique Abranches (1932-2004)
Nasceu em Lisboa. Romancista, dedicou-se também à pintura e aos estudos etnográficos. Foi preso pela PIDE. Fundou em Argel, com Pepetela, o centro de Estudos Angolanos.
Foi membro fundador da União de Escritores Angolanos e da UNAP (União Nacional dos Artistas Plásticos).


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