sexta-feira, 27 de junho de 2008

Quadras de Eduardo Manuel Simas

É escrito com sangue e dor
Aquilo que vou falar
E com o maior fervor
Agora vou começar.

Com licença, meus senhores,
Minha história eu vou contar,
Quando eu saí dos Açores
Para ir pr’ó Ultramar.

Quando à Terceira cheguei
E segui para o quartel,
Logo em mim recordei
A ilha de São Miguel.

Sentia uma coisa estranha
Sem saber compreender,
Coisa esquisita e tamanha,
Difícil de entender.

O tempo se foi passando,
Dias bem, dias mal,
E fomos continuando,
Soldados de Portugal.

Passados dois meses,
Lá fomos jurar bandeira.
Sofremos, mas às vezes
Parecia uma brincadeira.

Quando um dia na parada,
À noite, a silêncio tocou,
Veio a notícia desamparada
Que o comandante contou.

Com umas folhas na mão,
Más notícias veio dar
O nosso capitão:
- Vão para o Ultramar.

Dez dias mais
E fui a São Miguel,
Despedir-me de meus pais,
Eu, Eduardo Manuel.

Ó meu Deus, eu vou partir
Sem saber se isto é justo,
Qual o dia em que hei-de vir,
Vou viver com tanto custo.

Quanto à nossa viagem
Melhor não podia ser,
Com espanto e coragem
Vendo o que tinha que ver.

Corrido cerca de um mês
Partimos para o mato,
Lá fomos para o Cantanhez
Onde não parava um rato.

Na LDG embarquei
E belezas eu não vi,
Aquilo em que eu pensei
Foi na terra onde nasci.

Os dias se vão passando
Dão vontade de chorar,
As horas vou recordando
Passo a vida a disfarçar.

Na primeira operação
Que nós fomos fazer,
Deu-me um baque o coração,
O que veio a acontecer.

Quando os homens voltaram,
Três grupos da operação,
Logo as minas rebentaram,
Meu Deus, grande traição.

Passou palavra o primeiro,
Diz-me lá o que é que queres,
Vai chamar o enfermeiro
Pr’a vir tratar os alferes.

Ó meu Deus, o que seria,
Quem serão os desgraçados?
Foram para a enfermaria
Três alferes estilhaçados.

Lá ficaram mutilados
Os infelizes sem sorte,
Turras serão apanhados
E todos irão à morte.

Que tristeza e amargura
Tanta vez aconteceu,
Morrer uma criatura
P’las mão de um irmão seu.

Meus versos não levam cunho
Do que eu amo ou adoro,
Eles são o testemunho
Do que canto, do que choro.

Assim se passa esta vida,
Horas tristes a chorar,
Se a dor fosse esquecida
Eu poderia cantar.

Sofrer vinte e quatro meses,
Um soldado nada tem,
Agonias, tantas vezes,
Só Deus sabe, mais ninguém.

Eu sei que estes versos são
Uma coisa escrita ao leve,
São pobres, sem perfeição,
Como a pena que os escreve.

Estive quase a dar um tiro,
Primeiro dia de Agosto,
Ó que noite de martírio,
Passei a noite no posto.

Meus olhos no firmamento
Horas e horas, ou mais,
Vieram-me ao pensamento
Os meus queridos pais.

No dia 9 de Agosto
Fomos pró mato arreados,
Vamos voltar com o gosto
De não sermos apanhados.

À saída do quartel
Eu pensei na minha cama
E pensando em São Miguel
Caí enterrado em lama.

Que será preciso mais,
Estamos aqui como uns parvos,
Tiram-se os filhos aos pais
E fazem deles escravos.

Quando a manhã nasceu,
Cercámos o inimigo,
Foi a Fé que me valeu
Porque Deus vinha comigo.

Lá por fora o dia inteiro,
Sem qualquer resultado,
Perdidos num cativeiro
Entre capim alteado.

Ao quartel quando chegámos
Sem forças e cheios de fome,
Quase não falámos,
Fogo dentro nos consome.

Querem homens para a guerra,
A padecer fel e dores,
Queremos sair desta terra,
Queremos ir para os Açores.

Dia 7 de Setembro
Saímos ao anoitecer,
Eu não quero que me lembre
Tantos homens a sofrer.

Era tanta a nossa mágoa
E com tantos embaraços
Apanhámos forte água
Que pareciam estilhaços.

A 23 de Dezembro,
Ó mãezinha muito querida,
Eu nem quero que me lembro
Parecia o fim da vida.

À noite dois pelotões
Saíram todos armados
E com nove foguetões
Lá fomos nós atacados.

O fogo acabou
Sem nos causar mal,
Nossa Senhora salvou
Os soldados de Portugal.

Isto foi acontecido,
Queiram todos acreditar,
Quanto se tem sofrido
Nesta vida militar.

Que vida tão rigorosa
Que até nos faz pasmar,
Que vida tão perigosa,
Soldados do Ultramar.

Assim fui tendo Fé,
Pedindo a Deus que me ajude
Pr’a que ao sair da Guiné
Leve a vida e a saúde.

Nota: Eduardo Manuel Simas, um poeta popular açoriano
"Cufar, 3 de Novembro de 1974

Entre os soldados açorianos meus vizinhos, o Eduardo Manuel Simas é poeta. Descobrimos afinidades e o rapaz veio mostrar-me uns versos da sua autoria, bem melhores do que os meus. Como acha que eu sou mais entendido nas coisas da arte poética, pediu-me que lhe corrigisse os erros do português e melhorasse as quadras. "
Luís Graça

Fonte: Blogue "Luís Graça e Camaradas da Guiné" - post de 26Jun2008

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