quarta-feira, 15 de outubro de 2008

Primeira Hora

"Lisboa, Cais das Colunas (1940-50)", foto de João Martins

O ano desfolhou-se, dia a dia,
como uma flor cortada, um girassol,
e dia a dia a sua voz calou-se
como velha cansada melodia
de velho rouxinol.

Ontem, à meia-noite, a minha rua
abriu de par em par as portas, as janelas,
e deitou fora o lixo, as coisas velhas:
cacos, farrapos, latas e panelas.

Era a Primeira Hora
do ano que chegava.
- E eu? - pensei - Que posso deitar fora?
Que poderemos todos deitar fora?

Ai, Senhor, tanta coisa!
Nem cacos, nem farrapos,
nem latas velhas nem trapos
mas tanta dor,
Senhor,
mal empregada!
Tantos gestos errados,
as pequenas traições,
os pequenos pecados.
As calúnias subtis,
as flores venenosas
da alma envenenada,
e a cicatriz
da culpa inconfessada,
e as palavras que ferem como gumes
de afiadas adagas.

Ressentimentos, azedumes
que Te fazem sangrar as Cinco Chagas.
As larvas dos ciúmes
e as cobras rastejantes
dos pensamentos impuros.
Egoísmos sem fim
e os altos muros
das torres de marfim.
Descrença,
indiferença,
despeitos recalcados,
amassados com ódio, com rancor,
e o amargo sabor
da solidão.

Ah, Senhor, nesta hora de perdão,
nesta Primeira Hora,
quantas coisas podemos deitar fora!

Fernanda de Castro, In "70 anos de Poesia",
Fund. Eng. António de Almeida, 1989, p. 311/2.

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