quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Alma viva

Não há mais como impedir
Se ela queima
E arde
Pede espaço pra sair
Teima
Faz alarde

A carícia não acalma
Ao invés:
Põe mais palha
Incendeia o desejo da alma
Que passa através
E se espalha

Agora eu sou dois
(Minha alma e eu)
Variavelmente
Não penso no depois
E se ela enlouqueceu
Que seja bom pra gente

domingo, 17 de janeiro de 2010

Viva o dia de hoje!

Tem dias como o de hoje
que tudo fica tão alegre e iluminado,
que me pego a todo momento rindo a toá.
Fico falando comigo mesma
brincando de sorrir.
Agora mesmo estava ali debaixo do chuveiro,
dançando e celebrando a felicidade do dia.
Acho que os deuses e os meus amigos verdadeiros
que torceram outros dia sem saber o motivo
da necessidade da torcida
me deram sorte e graça e hoje estou muito feliz.
Estou vendo vagalumes, por toda parte
tem aqui no terreiro aos milhões
e uma chuva deles cobre meu corpo nu
sobre a cama.

Não sou e nem quero ser santa,
mas no dia de hoje meu corpo está constituído de luz.
Dou gargalhadas de felicidades
que pode ser ouvidas em toda parte do planeta
e contagiar outras almas,
aqui na Terra e em outras galáxias.
Fico feliz que um vagalume em especial tenha vindo me visitar
e tenhamos nos decididos
por mutuamente nos alegrar.
Fico feliz por viver dias como dia de hoje
que trazem promessa de um amanhã muito melhor.


segunda-feira, 11 de janeiro de 2010

A camioneta vermelha

Se há lugar na vossa geografia
para um friável coração de adobe
digo-vos que não trouxe muito mais
dos tiros da Camioneta Vermelha.

A coluna de Zala vinha vindo
tarda como sempre e não se ouviram
durante muitas horas os motores
nesse alto da Camioneta Vermelha.

A gente deitava-se nos abrigos,
deitava-se no silêncio e respondia
somente alguma grita de macacos
ali perto na Camioneta Vermelha.

Por ironia, eu estava lendo
um romance de Cardoso Pires
ou talvez poemas de Ruy Belo
sobre a cidade na Camioneta Vermelha.

Digo-vos que não trouxe muito mais
dos tiros cruzados de arma fina
quando o adobe começou a estalar
no meu peito na Camioneta Vermelha.

Queria contar tanta coisa veloz
então acontecida mas não posso
recordar senão esse estampido
caindo súbito na Camioneta Vermelha.

Sou um desgraçado poeta da província
com um rio que no Verão é areia,
algumas casas, algumas flores belíssimas
despropositadas na Camioneta Vermelha.

O meu modo é cantar e eu canto
mesmo que apeteça mandar um balázio
no peito de adobe, o mesmo peito
que estremecia na Camioneta Vermelha.

Por isso aqui estou eu para nuns versos
dizer que o mundo acaba e não acaba
quando a massa de um coração frágil
lembra a cidade entrevista ao longe

longe do alto da Camioneta Vermelha.


domingo, 10 de janeiro de 2010

Senhor Alferes

Senhor Alferes,
p'ra que serve
esta espingarda?
Eu não tenho ódio
não me obriguem
a matar.

Senhor Alferes
mas que mata tão cerrada?
è ainda bem de dia
e não consigo enxergar.

Senhor Alferes
p'ra que serve
esta granada?
O meu braço é forte
mas não a quero
lançar.

Fonte: Livro "O Salazar nunca mais morre - Cartas de África em tempos de guerra e amor" de Manuel Beça Múrias, Pág. 60

Aqueceram ao fogo a pele dos tambores

Aqueceram ao fogo a pele dos tambores
E puseram-se a dançar em volta,
Seminus, colados, ondulantes.
A própria terra de África
Tão acostumada
Estremeceu de prazer.
As mulheres receosas sentaram-se longe
Passando de boca em boca o cachimbo de cabaça.
O pretinho veio a chorar
Para os dois braços enormes que se abriram e
Fecharam sobre ele.
Olhou, olhou, sorriu, adormeceu.

A mãe sacudiu-o, admirada,
"Acorda menino, é a voz da nossa raça."

Fonte: Livro "O Salazar nunca mais morre - Cartas de África em tempos de guerra e amor" de Manuel Beça Múrias, Pág. 106

ILHA

Ilha
Tu vives — mãe adormecida —
nua e esquecida,
seca,
fustigada pelos ventos,
ao som de músicas sem música
das águas que nos prendem…

Ilha:
teus montes e teus vales
não sentiram passar os tempos
e ficaram no mundo dos teus sonhos
— os sonhos dos teus filhos —
a clamar aos ventos que passam,
e às aves que voam, livres,
as tuas ânsias!

Ilha:
colina sem fim de terra vermelha
— terra dura —
rochas escarpadas tapando os horizontes,
mas aos quatro ventos prendendo as nossas ânsias!

OBS: Um poema de Amílcar Cabral - Praia, Cabo Verde, 1945

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

DESEJOS

Desejo a você
Fruto do mato
Cheiro de jardim
Namoro no portão
Domingo sem chuva
Segunda sem mau humor
Sábado com seu amor
Filme do Carlitos
Chope com amigos
Crônica de Rubem Braga
Viver sem inimigos
Filme antigo na TV
Ter uma pessoa especial
E que ela goste de você
Música de Tom com letra de Chico
Frango caipira em pensão do interior
Ouvir uma palavra amável
Ter uma surpresa agradável
Ver a Banda passar
Noite de lua Cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus
Não Ter que ouvir a palavra não
Nem nunca, nem jamais e adeus.
Rir como criança
Ouvir canto de passarinho
Sarar de resfriado
Escrever um poema de Amor
Que nunca será rasgado
Formar um par ideal
Tomar banho de cachoeira
Pegar um bronzeado legal
Aprender um nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-Sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta
Recordar um amor antigo
Ter um ombro sempre amigo
Bater palmas de alegria
Uma tarde amena
Calçar um velho chinelo
Sentar numa velha poltrona
Tocar violão para alguém
Ouvir a chuva no telhado
Vinho branco
Bolero de Ravel
E muito carinho meu.


Eu falo das casas e dos homens

Eu falo das casas e dos homens,
dos vivos e dos mortos:
do que passa e não volta nunca mais...
Não me venham dizer que estava materialmente
previsto,
ah, não me venham com teorias!
Eu vejo a desolação e a fome,
as angústias sem nome,
os pavores marcados para sempre nas faces trágicas
das vítimas.
.
E sei que vejo, sei que imagino apenas uma ínfima,
uma insignificante parcela da tragédia.
Eu, se visse, não acreditava.
Se visse, dava em louco ou profeta,
dava em chefe de bandidos, em salteador de estrada,
- mas não acreditava!
.
Olho os homens, as casas e os bichos.
Olho num pasmo sem limites,
e fico sem palavras,
na dor de serem homens que fizeram tudo isto:
esta pasta ensanguentada a que reduziram a terra inteira,
esta lama de sangue e alma,
de coisa a ser,
e pergunto numa angústia se ainda haverá alguma esperança,
se o ódio sequer servirá para alguma coisa...
.
Deixai-me chorar - e chorai!
As lágrimas lavarão ao menos a vergonha de estarmos vivos,
de termos sancionado com o nosso silêncio o crime feito
instituição
e enquanto chorarmos talvez julguemos nosso o drama,
por momentos será nosso um pouco do sofrimento alheio,
por um segundo seremos os mortos e os torturados,
os aleijados para toda a vida, os loucos e os encarcerados,
seremos a terra podre de tanto cadáver,
seremos o sangue das árvores,
o ventre doloroso das casas saqueadas,
- sim, por um momento seremos a dor de tudo isto...
.
Eu não sei porque me caem as lágrimas,
porque tremo e que arrepio corre dentro de mim,
eu que não tenho parentes nem amigos na guerra,
eu que sou estrangeiro diante de tudo isto,
eu que estou na minha casa sossegada,
eu que não tenho guerra à porta,
- eu porque tremo e soluço?
Quem chora em mim, dizei - quem chora em nós?
.
Tudo aqui vai como um rio farto de conhecer os seus meandros:
as ruas são ruas com gente e automóveis,
não há sereias a gritar pavores irreprimíveis,
e a miséria é a mesma miséria que já havia...
E se tudo é igual aos dias antigos,
apesar da Europa à nossa volta, exangue e mártir,
eu pergunto se não estaremos a sonhar que somos gente,
sem irmãos nem consciência, aqui enterrados vivos,
sem nada senão lágrimas que vêm tarde, e uma noite à volta,
uma noite em que nunca chega o alvor da madrugada...


quarta-feira, 6 de janeiro de 2010

Makèsú

"Kuakié!... Makèsú, Makèsú..."

O pregão da avó Ximinha
è mesmo como os seus panos
Já não tem a cor berrante
Que tinha nos outros anos.

Avó Ximinha está velhinha
Mas de manhã, manhãzinha,
Pede licença ao reumático
E num passo nada prático
Rasga estradinhas na areia...

Lá vai para um cajueiro
Que se levanta altaneiro
No cruzeiro dos caminhos
Das gentes que vão p´ra Baixa.
Nem criados, nem pedreiros
Nem alegres lavadeiras
Dessa nova geração
Das "Venidas de alcatrão"
Ouvem o fraco pregão
Da velhinha quitandeira.
- "Kuakié!... Makèsú, Makèsú..."
- "Antão, véia, hoje nada?"
- "Nada, mano Filisberto...
Hoje os tempo tá mudado..."

- "Mas tá passá gente perto...
Como é aqui tás fazendo isso?"

- "Não sabe?! Todo esse povo
Pegô um costume novo
Qui diz qué civrização:
Come só pão com chouriço
Ou toma café com pão...

E diz ainda pru cima
(Hum... mbundu Kene muxima...)
Qui o nosso bom makèsú
è pra véios como tu."
- "Eles não sabe o que diz...
Pru qué Qui vivi filiz
E tem cem ano eu e tu?"

- "É pruquê nossas raiz
Tem força de makèsú!..."

Fonte: "Angola - Viriato da Cruz - o Homem e o Mito" de Edmundo Rocha, Francisco Soares e Moisés Fernandes

Sá da Bandeira

Retouçando louça nas espaladas da Chela
Sá da Bandeira tem
Policormias, fulgências, feitios e transparências
De um pratinho de Louça
De Rouen.

Mal ainda o sol aflora no horizonte, já ela -
Nas faces da manhã - a frescura do clima
No sangue de luz - uma alegria vermelha e sonora
Que a terra óptima produz - já ela
Pela voz argentina dos regatos e das levadas
Canta a cavatina da Fertilidade
Que lhe ensina a fonte
Da Senhora do Monte!...

Cidade académica! Cidade que marca
Nos passaarinhos da criançada
Que a caminho da Escola
As ruas jubila
Nos passos firmes dos jovens do Liceu
O ritomo inicial da marcha em crescendo
Do progresso da Huíla! Do progresso de Angola!
Em, Sá da Bandeira,
Maravilho-me do estupendo manifestar dos elementos:
- as chuvas torrenciais, o estrondo do trovão,
a fogagem poética do vento
voando a tua saia azul - do azul do céu...
e pondo ao léu as rendas-nuvens da tua combinação...

Amo, Sá da Bandeira,
Os cormos miniaturais
Da tua paisagem:
- o felpo verde-pompa da capa cinzewnta
que assenta na lomba fria dos teus morros, e alfombra
o entre-casario devoluto
dos teus bairros...
O abandono humilde e hirsuto
dos teus eucaliptais...
As devesas... as tuas hortas... os teus pomares...
E o reposteiro simpático de trepadeiras
Espreguiçando-se em flores nas tranqueiras
E escondenbdo a intimidade ciosa dos teus lares...
Adoro a graça mansamente provinciana
E apaixonante
Dos grupos de tuas moças
Passeando em torno do jardim municipal
A bondade envolvente e amorosa dos teus crepúsculos
E sob o olhar cansado e vigilante
Do senhor Câmara Leme...

Amo-te, enfim, na harmonia pictórico-sinfónica
Das tuas louçanias
Fulgências
Sonidos
E Transparências
De um...
pratinho de louça
de Rouen...

Viriato da Cruz - (1 de Novembro de 1951, Jornal de Angola , ano I, nº. 6, 27.5.1954).
Fonte: "Angola - Viriato da Cruz - o Homem e o Mito" de Edmundo Rocha, Francisco Soares e Moisés Fernandes

Related Posts with Thumbnails