quarta-feira, 21 de maio de 2008

Autobiografia

Entre faixas de pobreza
meu tristes pais me envolveram.
Desde então, em crua empresa,
contra mim as mãos se deram
a fortuna e a natureza.

Da terna mãe abraçado,
fui em silêncio profundo
com triste pranto banhado:
já antevia que o mundo
tinha mais um desgraçado.

Meu bom pai debalde quis
enxugar-lhe o pranto ardente.
que ela, alçando-me, me diz:
– «Vem, ó vítima inocente
dum amor casto e infeliz!

Toma os tristes cabedais
em que teu fado te lança;
toma pranto e inúteis ais;
entra na funesta herança
de teus desgraçados pais!»


Depois que plano caminho
já meu pé trilhando vai,
pobre alfaiate vizinho
de um capote de meu pai
me engendrou um capotinho.

Talhando a obra, maldiz
a empresa que lhe incumbiram;
fez nigromâncias com giz;
sete vezes lhe caíram
os óculos do nariz.

Sua obra se consagre
no portal das Barraquinhas
com grossas letras de almagre:
tapou jeiras, passou linhas:
fez um capote e um milagre.

Colchete no cabeção,
saí novo Adónis belo,
figa no cós do calção,
carrapito no cabelo
e um biscoitinho na mão.

Sobre sisudo galego,
que vara barril fiado,
já aos trabalhos me entrego:
e, em triste pranto lavado.
à porta dum mestre chego.

Debalde o bom mariola
dourava razões pequenas :
minha dor não se consola,
presságio talvez das penas
doutro tempo e doutra escola.

Entre medos e violência.
entrar no latim já passo.
e jurei obediência
a um clérigo, que era um poço
de tabaco e de ciência.

Dentre o sórdido roupão,
com a pitada entre os dedos
e o Madureira na mão,
revelava altos segredos
do advérbio e conjunção.

Era em gramática abismo;
honrava o século nosso;
porém de tal rigorismo,
que pôs na rua o seu moço,
por lhe ouvir um solecismo!

Entre o jota e o I romano
que diferença se achasse
trabalhava havia um ano;
obra que, se ele a acabasse...
... feliz do género humano!


Enquanto a minha alma emprego
nestas cansadas doutrinas,
à dourada idade chego
de ir ver as vastas campinas
que banha o claro Mondego.

Coas cabeças mal compostas,
vejo entre gostos e medos
mãe e irmãs à adufa postas;
choviam cruzes e credos
sobre as minhas bentas costas.

Já em rápidas carreiras
calcava a real estrada,
sem chapéu, sem estribeiras:
já a catana emprestada
cortava o vento e as piteiras.

Curta, embrulhada quantia.
que ao despedir me foi dada,
expirou no mesmo dia,
e fui fazendo a jornada
quase com carta de guia.

Mas já vejo a branca fronte
da alta Coimbra. fundada
nos ombros de erguido monte;
já sobre a areia dourada
vejo an longe a antiga ponte.

Povo revoltoso e ingrato
dentro em seus muros encerra;
em vão de adoçá-lo trato:
é um título de guerra
a chegada dum novato.

Pão amassado com fel,
e envolto em pranto, comia:
levei vida tão cruel,
que pior a não teria
se fosse estudar a Argel.

Sofri contínua tortura;
sofri injúrias e acintes;
lancei tudo em escritura,
e nos novatos seguintes
fiquei pago e com usura...

Da bolsa os bofes lhe arranco
no fresco pátio de Celas,
pedindo com génio franco
doces, gratuitas tigelas
do famoso manjar branco.

Sete anos de verde idade
fui metendo a destra mão
em multas desta entidade;
chamou-se boa feição.
mas era necessidade.

Achava-me sempre o dia
no tecto os olhos pregados:
a sagaz economia.
revoando nos telhados.
ao conselho presidia.

Gemer em segredo pude.
que o bom pai, falto de meios
quanto cheio de virtude.
só mandava nos correios
novas da sua saúde...


Quis de tais ondas sair
e algum bom porto aferrar;
quis o público servir,
e mandaram-me ensinar
as regras de persuadir.

Triste, enganosa ciência!
Dão-lhe louvores, mas falsos;
dizem que pode a eloquência
ir tirar dos cadafalsos
a perseguida inocência;

que chega do peito ao fim;
que arranca forçado pranto;
mas. senhor, não é assim:
esta arte, que louvam tanto.
só me faz chorar a mim.

Pende da hora oportuna;
sem ela, verá rasgadas
as soltas velas que enfuna:
arrasta vestes douradas
e é escrava da fortuna.

Não a vejo em mim frustrada,
só porque pouca me coube;
de si mesma é mal fadada:
a língua que mais a soube
foi em Roma retalhada!

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