Velada de Almas, em véspera da Perda da Independência
À memória do 1.º cabo, António de Oliveira
Paulino, meu devoto e sempre lembrado
condutor-auto.
1.
A dois dedos da madrugada
me adianto
para o camarada
morto — e canto, canto
como quem aponta uma espada
ao espaço do próprio espanto!...
Fixar-lhe a face fechada
é agasalhá-lo no manto
do tempo que arrecada
e cujo tampo levanto
É calcorrear uma estrada
com memórias a cada canto,
entoar a mais bela balada
do desencanto.
E não há nada
que valha tanto!
A dois dedos da madrugada
— canto!, canto…
Camarada:
Em pranto, canto!
2.
Quedou sempre manhã cedo
Na vida do camarada
Que o degredo não degrada,
Vem a medo, bem-amada
E singra e sangra em segredo
(E singra e sangra, sagrada)
3.
Pelas alturas se altera
Que outra vida o persuade
A ficar, em sonho, à espera
— À espera da eternidade…
Hoje é indício de enseadas
Além-Morte (A Morte vence-o,
Com o cilício e as ciladas
Do seu solene silêncio…)
4.
Agora, ei-lo a sós
Por trás da muralha
Do sono, e da voz
Que o silêncio agasalha
Da guerra descansa,
Em paz — tal maré
Sobre quem só é lembrança
Ou mais que lembrança é.
5.
Moída mais que por mós
A memória dá recado
De um coração que por nós
Bate apesar de enterrado.
Concha do chão, sonho a sós,
Na morte o encontro marcado
Do silêncio com a voz,
Do presente com o passado.
Veio a noite, e a paz após.
De vala a vala embalado,
Ali jaz, sono sem foz,
Em solidão o soldado
Atrás do remorso atroz
Que punge e chaga do lado
De um coração que por nós
Bate apesar de enterrado…
Pela dádiva desmedida
Do eterno camarada
Levo o tempo de vencida
E trago na minha vida
A morte dele hospedada!