terça-feira, 29 de janeiro de 2013

Canção do mestiço

Mestiço!

Nasci do negro e do branco
e quem olhar para mim
é como se olhasse
para um tabuleiro de xadrez:
a vista passando depressa
fica baralhando cor
no olho alumbrado de quem me vê.

Mestiço!

E tenho no peito uma alma grande
uma alma feita de adição
como l e l são 2.

Foi por isso que um dia
o branco cheio de raiva
contou os dedos das mãos
fez uma tabuada e falou grosso:
- mestiço!
a tua conta está errada.
Teu lugar é ao pé do negro.

Ah!
Mas eu não me danei ...
E muito calminho
arrepanhei o meu cabelo para trás
fiz saltar fumo do meu cigarro
cantei do alto
a minha gargalhada livre
que encheu o branco de calor! ...

Mestiço!

Quando amo a branca
sou branco...
Quando amo a negra
sou negro.
Pois é...

Francisco José Tenreiro, 1942
Fonte: Blogue "Lusofonia Poética-Poesia Lusófonas", post de 02Ago2012

sábado, 19 de janeiro de 2013

Ladainha dos póstumos Natais

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que se veja à mesa o meu lugar vazio

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que hão-de me lembrar de modo menos nítido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que só uma voz me evoque a sós consigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que não viva já ninguém meu conhecido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem vivo esteja um verso deste livro

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que terei de novo o Nada a sós comigo

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que nem o Natal terá qualquer sentido

Há-de vir um Natal e será o primeiro
em que o Nada retome a cor do Infinito

David Mourão-Ferreira, in «Cancioneiro de Natal»
Fonte. Blogue "Entre as Brumas da Memória", post de 25Dez2012.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

Toada gótica


Seguem-te os alicornes mansamente,
Pastando neve na montanha azul...
Que a tua mão, Senhora, os apascente
Sem nada que os altere ou que os macule!

O céu, coalhado, tem um ar ausente
Que nem parece o dum país do Sul.
E os alicornes pastam mansamente
– E a neve brilha na montanha azul!

Ondeiam nos pauis fantasmas brancos.
Tal como um sonho que se apaga e esfuma,
Anda a bailar o Inverno nos barrancos.

E tu sorris, atrás dos alicornes...
Ó pastorinha de vitral e bruma,
Que sobre mim a tua graça entornes!


sábado, 12 de janeiro de 2013

IRMÃOS D'ARMAS

Morreremos no mesmo dia
Pedras do mesmo padrão
Todo o condão e a magia
Toda a magia da acção
Gerando a interior geografia
De mapas sem dimensão

Morreremos no mesmo dia
Noivos do mesmo nevão
Solidão por companhia
Manhã d'armas meu irmão!

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Saudação aos que Vão Ficar


Como será o Brasil
no ano dois mil?
As crianças de hoje,
já velhinhas então,
lembrarão com saudade
deste antigo país,
desta velha cidade?
Que emoção, que saudade,
terá a juventude,
acabada a gravidade?
Respeitarão os papais
cheios de mocidade?
Que diferença haverá
entre o avô e o neto?
Que novas relações e enganos
inventarão entre si
os seres desumanos?
Que lei impedirá,
libertada a molécula
que o homem, cheio de ardor,
atravesse paredes,
buscando seu amor?
Que lei de tráfego impedirá um inquilino
- ante o lugar que vence -
de voar para lugar distante
na casa que não lhe pertence?
Haverá mais lágrimas
ou mais sorrisos?
Mais loucura ou mais juízo?
E o que será loucura? E o que será juízo?
A propriedade, será um roubo?
O roubo, o que será?
Poderemos crescer todos bonitos?
E o belo não passará então a ser feiura?
Haverá entre os povos uma proibição
de criar pessoas com mais de um metro e oitenta?
Mas a Rússia (vá lá, os Estados Unidos)
não farão às ocultas, homens especiais
que, de repente,
possam duplicar o próprio tamanho?
Quem morará no Brasil,
no ano dois mil?
Que pensará o imbecil
no ano dois mil?
Haverá imbecis?
Militares ou civis?
Que restará a sonhar
para o ano três mil
ao ano dois mil?

Millôr Fernandes, in "Pif-Paf"
Fonte: Pensador.info, Textos de Millôr Fernandes


sexta-feira, 4 de janeiro de 2013

Poeminha de Louvor ao "Strip-tease" Secular


Eu sou do tempo em que a mulher
Mostrar o tornozelo
Era um apelo!
Depois, já rapazinho, vi as primeiras pernas
De mulher
Sem saia;

Mas foi na praia!

A moda avança
A saia sobe mais
Mostra os joelhos
Infernais!

As fazendas
Com os anos
Se fazem mais leves
E surgem figurinhas
Em roupas transparentes
Pelas ruas:

Quase nuas.

E a mania do esporte
Trouxe o short.
O short amigo
Que trouxe consigo
O maiô de duas peças.
E logo, de audácia em audácia,
A natureza ganhando terreno

Sugeriu o biquíni,
O maiô de pequeno ficando mais pequeno
Não se sabendo mais
Até onde um corpo branco
Pode ficar moreno.

Deus,
A graça é imerecida,
Mas dai-me ainda
Uns aninhos de vida!

Fonte: Pensador.info, Textos de Millôr Fernandes

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Poema para Óscar Niemeyer

Gostava de estabelecer entre as palavras e o silêncio
aquelas proporções que Oscar Niemeyer consegue
entre volumes e não volumes
entre cheios e vazios.
Gostava de inventar linguagem dentro da linguagem
como Niemeyer inventa espaço dentro do espaço.
Mas como criar na escrita o nunca escrito?
Gostava meu caro Oscar Niemeyer
de pegar na caneta e fabricar um pouco de infinito
fazer com sílabas e fonemas
o que você faz com traços e com esquemas
Mas eu não posso meu caro eu não posso ou não sei
construir uma cidade com poemas.

Tão pouco sei se Deus tem mão e se desenha
não sei sequer se existe ou simplesmente
deixou para Oscar Niemeyer
o oitavo dia da criação.
Mas é o que parece quando você faz um croqui
e depois é Brasília
uma catedral um museu uma mulher
ou uma casa em Canoas.

Com Oscar Niemeyer o Brasil é mais Brasil
o mundo se refaz se reinventa se revoluciona
contra a injustiça contra a opressão contra a fealdade.
Cada projecto seu é um acto de harmonia
traço a traço você subverte o espaço
e semeia a beleza na desordem estabelecida.
Consigo é possível a utopia

consigo a arquitectura é outra vida.
Fonte: Blogue "Manuel Alegre", post de 06Dez2012

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