sexta-feira, 28 de dezembro de 2012

Poesia exploratória a você


Quem alisa meus cabelos?
Quem me tira o paletó?
Quem, à noite, antes do sono,
acarinha meu corpo cansado?
Quem cuida da minha roupa?
Quem me vê sempre nos sonhos?
Quem pensa que sou o rei desta pobre criação?
Quem nunca se aborrece de ouvir minha voz?
Quem paga meu cinema, seja de dia ou de noite?
Quem calça meus sapatos e acha meus pés tão lindos?
Eu mesmo.

Fonte: Pensador.info, Textos de Millôr Fernandes

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

Poesia Matemática


Às folhas tantas
do livro matemático
um Quociente apaixonou-se
um dia
doidamente
por uma Incógnita.
Olhou-a com seu olhar inumerável
e viu-a do ápice à base
uma figura ímpar;
olhos rombóides, boca trapezóide,
corpo retangular, seios esferóides.
Fez de sua uma vida
paralela à dela
até que se encontraram
no infinito.
"Quem és tu?", indagou ele
em ânsia radical.
"Sou a soma do quadrado dos catetos.
Mas pode me chamar de Hipotenusa."
E de falarem descobriram que eram
(o que em aritmética corresponde
a almas irmãs)
primos entre si.
E assim se amaram
ao quadrado da velocidade da luz
numa sexta potenciação
traçando
ao sabor do momento
e da paixão
retas, curvas, círculos e linhas sinoidais
nos jardins da quarta dimensão.
Escandalizaram os ortodoxos das fórmulas euclidiana
e os exegetas do Universo Finito.
Romperam convenções newtonianas e pitagóricas.
E enfim resolveram se casar
constituir um lar,
mais que um lar,
um perpendicular.
Convidaram para padrinhos
o Poliedro e a Bissetriz.
E fizeram planos, equações e diagramas para o futuro
sonhando com uma felicidade
integral e diferencial.
E se casaram e tiveram uma secante e três cones
muito engraçadinhos.
E foram felizes
até aquele dia
em que tudo vira afinal
monotonia.
Foi então que surgiu
O Máximo Divisor Comum
freqüentador de círculos concêntricos,
viciosos.
Ofereceu-lhe, a ela,
uma grandeza absoluta
e reduziu-a a um denominador comum.
Ele, Quociente, percebeu
que com ela não formava mais um todo,
uma unidade.
Era o triângulo,
tanto chamado amoroso.
Desse problema ela era uma fração,
a mais ordinária.
Mas foi então que Einstein descobriu a Relatividade
e tudo que era espúrio passou a ser
moralidade
como aliás em qualquer
sociedade.

Fonte: Pensador.info, Textos de Millôr Fernandes

sábado, 22 de dezembro de 2012

DA MINHA CASA VEJO SEMPRE O MAR


Eu Português me confesso,
Onde me possa encontrar,
Onde a Língua que professo,
Língua de comunicar
Dinamiza o meu progresso,
Constância de muito amar.
Da minha Casa vejo sempre o mar!
E meus olhos vassouraram
O inϐinito do azul,
Logo encontram continentes,
À partida para o sul.
Onde vivem outras gentes,
Que pusemos a falar
Língua de comunicar.
Das suas “casas” viram sempre o mar.
O mar que fora o caminho,
Inϐinito a descobrir,
Os continentes do mundo,
Que não eram conhecidos
E que ϐicaram providos
De um saber bem mais profundo.
O novo mar fora abrir,
Com a língua a alavancar
“Casas do mundo” dispersas,
Donde se vê sempre o mar,
Nas condições mais adversas,
Dominando os mares oceanos,
Com a língua portuguesa
A ser traço de união,
A “creolar”, em beleza,
Uma nova erudição.
Passaram centenas de anos,
Mas a raiz persistiu -
Oceanos baptizados,
Continentes descobertos,
Céus com mais estrelas, abertos,
E tudo o mais que se viu.
Tantos caminhos andados,
Porque a Língua o permitiu.
No construir, no gerar
Das minhas “casas de então”
Das de agora, por que não?
Donde se vê sempre o Mar,
Que não se pode olvidar,
Por que traço de união.

23.11.2012
Fonte: Boletim Informativo - Sociedade Histórica da Independência de Portugal, nº. 312 
Ano XXVIII Novembro 2012

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

A Terra Prometida


Poder dormir
Poder morar
Poder sair
Poder chegar
Poder viver
Bem devagar
E depois de partir poder voltar
E dizer: este aqui é o meu lugar
E poder assistir ao entardecer
E saber que vai ver o sol raiar
E ter amor e dar amor
E receber amor até não poder mais
E sem querer nenhum poder
Poder viver feliz pra se morrer em paz.

Fonte: Blogue "Sedimentos...", post de 01Dez2012

sábado, 15 de dezembro de 2012

Serra dos Macópios

Serra dos Macópios,
Colina por mim chamada
Mistério no miradouro ao alto
Caminho ou descaminho
De pedras de granito ponteagudas
Com lagartos barulhentos
Mexidos e amedrontadores
De pescoços cheios e vermelhos
A gritarem zangados

Ao cimo uns pilares caiados de branca cal
Talvez uma coberta em esqueleto
Ar abandonado e só
Mistério na fundação

Ali fui em brincadeira
Várias vezes
Era uma aventura
Aqueles lagartos feios e barulhentos
Aqueles barulhos de mato…
Que apareciam de todos os cantos
Aqueles pedregulhos cinzentos
E, em volta, ninguém
Mato, uma sanzala do outro lado.

Ao nascente
Era a avenida das laranjeiras
A casa do velho Primo
Por trás da escola, o comboio
Que passa devagar
O jardim, o parque
Com as árvores grandes
Com o tanque da horta
Onde furtivamente se tomava banho

Mais além a mulola
De ruído tão forte
Que mais parecia uma tempestade
Que trazia do alto paredão da Chela
Pedregulhos, calhaus
E outros perigos imaginados.

Poema realizado às 11h00 no cadeirão preto localizado no hall de entrada para o grande auditório da Culturgest em Lisboa.

terça-feira, 11 de dezembro de 2012

Por tantas vezes ter ido à "Severa"


Por tantas vezes ter ido à "Severa"
Eu, que era simplesmente um locutor
Sinto-me agora, embora muito bera,
Do fado, um terrível cantador.

E quando p'ra cova fôr por destino,
Em "squife" bizarro vou nesse dia,
Irei num caixão super-heterodino
Do feito duma telefonia.

À cabeceira a servir d' almofada
Levarei um transmissor d'onda curta!
Co'á voz feita em pó, cinza, terra e nada
Ninguém a ouvir-me, creio, se furta.

E então, lá de longínquas paragens
Eu vos falarei nas noites de inverno
Fazendo divertidas reportagens...
Só não sei se do Céu... se do Inferno!

Letra de Fernando Pessa com música do Fado Marceneiro
Fonte: Fernando Pessa 1902-2002 Jornalista, Lisboa-Abril-2005.
Publicação da Câmara Municipal de Lisboa - Comissão Municipal de Toponímia.

sábado, 8 de dezembro de 2012

Meu Pai

Três de Setembro de 1918
No quilómetro cento e tal
Filho terceiro de um casal pobre
Cercado de mato
Sem queixas de incomodidades
Um bébé nascia

Órfão de mãe quase à partida
Mãe Josefa
Que nunca soubemos d’ onde viera
De Pernambuco, Talvez!
D´onde se apartara
Para que não se sentisse estrangeira
Em terra própria

Órfão de pai aos onze anos
Fez-se criança de pé descalço
Cresce com mamã negra e de panos
Nos anexos da casa do pai defundo

Seu pai, um número
Na estatística de Paiva Couceiro
Fora obreiro-construtor do Caminho de Ferro de Moçâmedes

Adolescente trabalhador
Carpinteiro e barbeiro
Estudante por vontade própria
Inicia carreira de sertanejo
Com 19 anos apenas

Casa com jovem
De família importante com palmarés de mato
Cria três filhos
Paga instrução a quase dois mil quilómetros de distância
E quinze dias de viagem
Por estradas do fim-do-mundo

De tipóia, a pé, a cavalo, de bicicleta…
Percorre caminhos gentílicos e novos

Fez carreira de tarimbeiro
Por todo o mato de Angola

Tornou-se pessoa importante
Discursava em reuniões
De pretos e de brancos
Continentava a bandeira da Pátria una
Este construtor de pontes e de estradas
Este que fez de ambulância
Este que foi empreendedor para outros
Do negócio da touqueia
Este “Pai de pretos” como o tratavam

O cidadão de segunda de província distante
Fazia Império
E dava sentido de vida ás populações
Serviu a Pátria una
E a Pátria africana
Com pioneira angolanidade
Orientou a defesa
Ajudou as populações
Contra a guerra que vinha de fora

Recebido em festa
Por multidões agradecidas
Que abriam alas
Com niquiches e batucadas
Cantares e palmas

êêiaaiô, êêiaaiô
amistadôl aiêtu uápossoca uápandula

e em coro frenético e ritmado
todos cantavam

amistadôl aiêtu uápossoca uápandula
amistadôl aiêtu uápossoca uápandula

O corpo cansou-se
De anos de esforço insano
E cedo tombou

No funeral
Na secular Igreja do Carmo
Houve missa com igreja cheia

No cemitério
Milhares de pretos e brancos o acompanharam
E dezenas de mamãs negras de preto o choraram.

terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Prefa(s)cio-II - TERÇA-FEIRA, MARÇO 28, 2006

TERÇA-FEIRA, MARÇO 28, 2006

Rodrigo Emílio
Passam hoje dois anos sobre a morte do poeta.

Prefa(s)cio-II

De entre todos os motivos
porque sulco os loucos trilhos
de extermínio
em que me abismo,

sobressaem, sempre vivos:

os meus livros,
os meus filhos
e o fascínio
do fascismo.

Rodrigo Emílio
PUBLICADA POR RODRIGO N.P. ÀS 3/28/2006

Fonte: Blogue "Batalha Final" - post de 28Mar2006http://batalhafinal.blogspot.com/2006/03/rodrigo-emlio.html

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